A chamada Cimeira da Democracia decorreu, pela segunda vez, entre os dias 28 e 30 de março de 2023, em Washington, D.C. e foi organizada pelo governo dos Estados Unidos da América (tendo tido o apoio de alguns países aliados como a Costa Rica, Holanda, Coreia do Sul e República da Zâmbia). A primeira edição, organizada em 2021 (a 9 e 10 de dezembro), e a cimeira de 2023 reuniram governos, setores da sociedade civil e do setor privado, teoricamente com o objetivo de reforço dos regimes democráticos e da ação democrática do Ocidente no Mundo.
Se durante a cimeira de 2021 poderiam existir dúvidas sobre as intenções políticas do governo dos EUA, a ação dos respetivos governos, desde 2021 até ao presente, veio desfazer essas incertezas. Essa atuação veio reafirmar a estratégia geopolítica dos EUA de tentar fragmentar e atiçar o confronto entre blocos geopolíticos, entre as autointituladas “Democracias”, contra o resto do Mundo, sendo que os EUA (que só representam 4% da população mundial) pretendem reforçar a sua HEGEMONIA sobre todos os outros países.
O governo dos EUA não quer reconhecer que já vivemos num mundo multipolar, onde não lhe compete decidir quem são os países democráticos e não lhe compete decidir qual o tipo de modelo de democracia deve ser aplicado em cada país. Para além do mais, o modelo de "democracia americana" está em crise e tem vindo a demonstrar possuir sérios problemas de natureza social: promovendo a divisão e fragilização de muitos grupos sociais, não ajudando a inclusão social, contribuindo para conflitos raciais, fomentando a polarização política e o alargamento gigantesco da divisão entre ricos e pobres.
O desgaste progressivo e acentuado do sistema democrático nos EUA, é revelado pela denúncia do Center for Public Integrity, dos EUA, segundo a qual o próprio processo eleitoral americano tem vindo a ser fragilizado, ao ter sido modificado em mais de metade dos estados, de forma a reduzir os direitos de voto face ao estabelecido em eleições anteriores. Esses estados passaram a restringir mais o acesso à votação discriminando áreas com dominância de grupos étnicos não anglo-saxónicos e de população mais pobre. Estas alterações no sistema eleitoral dos EUA foram igualmente denunciadas pelo Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA), da Suécia, que no seu relatório “O Estado Global da Democracia 2021” classificou os Estados Unidos como uma democracia em retrocesso, e identificou um total de 33 leis que restringem o direito ao voto promulgadas por tribunais de 19 estados estadunidenses. Outros resultados desastrosos sobre a saúde da democracia nos EUA, que vieram a público na recente investigação do Pew Research Center, sediado em Washington DC, EUA, que revelou que 65% dos estadunidenses reconhecem que o sistema democrático do país precisa de uma grande reforma e 57% deles já não consideram o país como um exemplo de democracia.
O chamado sistema “democrático” dos EUA tem, acima de tudo, permitido a depredação dos recursos económicos do próprio país e de muitos outros países do globo. Este sistema “democrático” tem sido capturado pelos interesses económicos do complexo militar industrial dos EUA, em desfavor dos outros sectores económicos dos EUA. Tem, assim, protelado o investimento em energias renováveis e adiado o combate às alterações climáticas, prejudicando a preservação do meio ambiente. Tem lesado a democratização do seu sistema público de saúde, que continua a não ser universal e a discriminar quem é mais pobre; não tem implementado a modernização dos seus sistemas de distribuição elétrica, de transportes coletivos e ferroviários de alta velocidade, da habitação pública urbana, entre tantos outros setores decadentes nos EUA.
O chamado sistema “democrático” dos EUA, com base no seu poder económico, tem financiado a formação superior de parte da elite dos países Ocidentais colocando essas personalidades nos principais cargos políticos desses países e organizações coletivas, (da segurança à política, como no caso da União Europeia) de forma a poder controlar a política e as economias dos países seus aliados. Observe-se o caso da oposição, pelos representantes dos países Ocidentais, à criação de uma comissão independente de investigação sobre a destruição dos gasodutos Nord Strem 1 e 2, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, no dia 27 de março.
Os EUA têm também vindo a aprovar leis agressivas de sanção a todas as companhias que não obedeçam às limitações impostas, pelo seu governo, a países e a empresas que são seus concorrentes comerciais. Por outro lado, aprovaram leis de investimento direto à sua reindustrialização, prejudicando drasticamente a industrialização dos seus aliados europeus. Esta ação dos EUA é feita contra acordos estabelecidos, anteriormente, com os seus aliados e contra muitas regulamentações da Organização Mundial do Comércio (OMC), cujo tribunal arbitral tem vindo sucessivamente a ser impedido de funcionar pelo veto dos EUA.
Constata-se que estas cimeiras não têm promovido a democracia, nem a tolerância, nem a paz. Têm, em contrapartida, promovido o espírito de guerra fria e de confrontação entre blocos. Estas cimeiras têm sido utilizadas, principalmente, para alimentar e coordenar a narrativa de justificação da hegemonia militar e política dos EUA sobre os restantes países, em nome dos valores ditos “democráticos”. Em última instância, têm tentado alargar a África e à Ásia, mas sem sucesso, a aliança da atual intervenção de países ocidentais na Guerra na Ucrânia (que envolvem só cerca de 12% da população mundial). Esta é uma guerra por procuração, dirigida pelos EUA, através do povo martirizado da Ucrânia, para tentar incapacitar a Rússia de ter uma ação global geopolítica autónoma. Atingido este objetivo, os EUA poderão dedicar-se então à Guerra contra a China, que já ameaçaram, com total desrespeito pela segurança e pelo desenvolvimento económico-social mundial.
A história dos EUA, infelizmente, não nos tranquiliza. Só durante 16 dos seus cerca de 240 anos é que não se envolveram em nenhuma guerra. Foram guerras por domínio de territórios e de matérias-primas (como o petróleo). Os EUA têm, igualmente, vindo a chantagear quem não se submete aos seu desígnios político-económicos, aplicando sanções à margem das Nações Unidas, do direto internacional e da OMC. Estas sanções têm vindo a ser aplicadas contra milhares de empresas e dezenas de países (Cuba, Síria, Zimbábue, Irão e Venezuela são só alguns dos exemplos). As sanções tem reduzido o nível de vida dessas populações, mas geralmente fracassaram na submissão desses países.
A realidade tem demonstrado a ineficácia da imposição de modelos de democracia, que não se adaptem às características peculiares da história e cultura de cada país. Não há um único modelo de democracia a seguir por todas as sociedades. Cada país desenvolverá o seu próprio modelo de democracia, fruto de um processo complexo e endógeno, que contribua para resolver os problemas concretos de toda a sua população.
Por Rui Lourido, historiador, presidente do Observatório da China, presidente da União de associações de Cooperação e Amizade Portugal-China