Cripor e eu
"Por mais que o ver fique eliminado, isso não quer dizer que não se veja nada. Senão, precisamente, que se veja uma infinidade de coisas, tanto como se queira". Bertolt Brecht, em seu discurso sobre o rádio.
No centro da sala e coberto com um lenço, um receptor de rádio ganhava visibilidade na casa de meus pais. Contagiado pelas suas canções, meu interesse por ele começa logo na infância. Como residia distante da cidade, sua importância veio preencher uma necessidade prática. Era o carteiro que trazia as mensagens, o relógio que informava a hora certa, a vitrola que tocava a música preferida, o jornal falado... Entre informação e entretenimento, uma coisa sempre me encantava no rádio: sua possibilidade de me conduzir a lugares distantes e às percepções, antes, nunca imaginadas.
Passava o dia e a noite se aproximava, trazendo consigo não só as condições de melhor propagação, mas também as reminiscências da natureza humana. Restrito às acomodações do lar, o cansaço do cotidiano se desfazia e, então, começava uma nova viagem. Lugares, pessoas, sons, cheiros, sabores, sensações e realidades... Os mistérios noturnos se fundiam ao imaginário, que se consolidava na linguagem radiofônica.
Numa dessas noites, limpei bem os ouvidos, para ouvir melhor. Puxei a cadeira e me assentei ao pé do rádio para desvendar duas letrinhas, que sempre me chamava a atenção. Era apenas duas letras "OC". Girei o botão do receptor e comecei a investigar o que havia nela. Foi então, que me deparei com as Ondas Curtas, "OC", e esbocei meu primeiro contato com a radiodifusão internacional.
Das paisagens do campo às paisagens sonoras, o meu mundo se ampliava à medida que começava a explorar o espectro radiofônico. Girava a sintonia, bem devagar, para captar um novo país... De repente, uma voz em português, com sotaque, ganhava relevo entre os ruídos. Mudei o ângulo da antena, fiz um novo ajuste na sintonia fina e ouvi em bom som: "Aqui Rádio Pequim".
A palavra "aqui" dava autenticidade ao que, de fato, a emissora pretendia anunciar. Se antes, eu apenas tinha lido ou ouvido falar sobre a China, naquele momento, "aqui" e "agora", aquele país se fazia presente na minha sintonia, no interior da minha própria casa. Já não mais se fazia necessária a mediação de outrem ao seu respeito. Era uma China, capaz de falar sobre si mesma, de mostrar aos ouvintes de língua portuguesa suas experiências culturais, inquietudes e a importância histórica que ocupa no cenário mundial.
Marshall McLuhan sempre dizia que a mensagem é o meio. Por isso, sempre quando escutava a Rádio Pequim – hoje Rádio Internacional da China –, tinha a consciência de que não estava apenas diante de um aparelho eletroeletrônico, capaz de captar e veicular a voz humana. Era meu contato direto com o povo chinês, que se transportava nas ondas hertzianas para atingir pontos tão remotos e se fazer presente na sintonia estrangeira.
Essa comunicação direta me faz refletir sobre os laços afetivos que tenho ampliado através do CRIPOR, desde o início dos anos 90. Foi, sem dúvida, muito gratificante ligar o rádio e ouvir o meu nome sendo veiculado na sua programação. Agora era o CRIPOR e eu, isto é, se antes eu apenas me limitava a ouvir o povo chinês, agora a minha participação através das perguntas e solicitações musicais, me dava a condição de me inserir na sua pauta radiofônica.
Essas experiências foram cravadas por um constante laço de amizade. Sempre tive a sensação de que os profissionais do CRIPOR fazem parte da minha família. São pessoas dotadas de uma receptividade e um sentimento profundo de respeito mútuo, de encontrar a melhor forma para apresentar a China à sua audiência. Hoje disponho de um pequeno acervo de pesquisa, que desenvolvi a partir das lembranças e dos materiais, que me foram enviados por esses amigos. Eles objetos estão sobrecarregados de histórias e memórias, que superam sua materialidade e reforçam minhas inferências rádio/China.
O rádio me faz nutrir um sentimento de afeição e solidariedade com o povo chinês. Principalmente, quando é acometido por alguma catástrofe natural e até mesmo pela concretização de sonhos, como foi a magnitude da última Olimpíada. Além das conquistas político-econômicas, precedidas pelo projeto de reforma e abertura, também fazem parte desse contexto de desenvolvimento e melhoria das condições de vida. São minhas percepções no rádio.
Bertolt Brecht, ao falar sobre a limitação dos componentes visuais na mensagem radiofônica, nos remete à potencialidade de o rádio tornar latentes as subjetividades da vida mental. Passando a assumir uma dinâmica, onde se pode reconstruir percepções e novas visibilidades. Por isso, a sintonia radiofônica é um convite a desvendar uma civilização tão fascinante e simbólica como a China, através de sua contribuição histórica na geração de riquezas à humanidade.
No silêncio da minha casa, através das ondas da Rádio Internacional da China eu posso passear pela Grande Muralha, conhecer os enigmas da cidade proibida e dos guerreiros de Xian, suas lendas, seu povo, sua cultura. Das iguarias imperiais no centro de Pequim à musicalidade campesina e tradicional... Eu as vi, ouvi, degustei, senti e percebi em todos os sentidos.
Nesse momento em que o CRIPOR se prepara para comemorar seus 50 anos de fundação, também me sinto parte desta história. Embora eu tenha uma experiência recente com suas emissões, percebo que nenhum meio transmite para o exterior apenas pelo prazer de transmitir. Suas mensagens têm uma finalidade e assume grande importância, a partir do momento em que permite ampliar consciências.
Por isso, o CRIPOR não apenas me apresentou a China, mas ampliou minha visão sobre o mundo ao perceber os legados daquele país e suas contribuições histórico-socioculturais à humanidade. Hoje me aproprio de sua programação para compreender o universo e a mim mesmo. Sou consciente de que, apesar das inovações tecnológicas da comunicação de massa, as Ondas Curtas ainda se constitui num importante instrumento de aproximação de pessoas e saberes. Por meio dela, é possível resgatar culturas tradicionais e dar visibilidade às formas imaginárias, tão necessárias na sociedade contemporânea. Ao me valer dessas prerrogativas noto uma reciprocidade entre o CRIPOR e eu.
Antonio Argolo Silva Neto