China e Estados Unidos, na Apec: Os pilares da cooperação
Fonte: CMG Published: 2023-11-14 16:09:08

Por António dos Santo Queirós. Professor. Investigador da Universidade de Lisboa

A Semana dos Líderes Econômicos da Apec de 2023, organizada pelos Estados Unidos e presidida pelo presidente Joe Biden, em São Francisco, adotou o lema: “Criando um futuro resiliente e sustentável para todos”. Neste artigo, analisamos as relações entre os EUA a China, no quadro da Cooperação Económica Ásia Pacífico (Apec), procurando identificar os obstáculos que dificultam a construção dos caminhos de cooperação entre as duas grandes nações e os pilares sobre os quais se podem edificar sólidas pontes, para um futuro comum.

Respeito mútuo da soberania e integridade nacional

A Resolução das Nações Unidas nº 2.758, de 1971, reconheceu a unidade da China num só país, “One China”. O princípio de Uma Única China é o núcleo essencial dos três comunicados conjuntos China-EUA e a premissa e fundamento para o estabelecimento e desenvolvimento das relações diplomáticas entre a China e os EUA. Em 1979, os Estados Unidos assumiram um claro compromisso no Comunicado Conjunto sobre o Estabelecimento das Relações Diplomáticas China-EUA de que, “os Estados Unidos da América reconhecem que o Governo da República Popular da China é o único governo legítimo da China. Neste contexto, o povo dos EUA manterá as relações culturais, comerciais e outras relações não oficiais com o povo de Taiwan”.

A Resolução das Nações Unidas “One China” e o comunicado conjunto EUA-China, que a reforça, desempenharam um papel fundamental na transição democrática de Taiwan, e na cooperação para o progresso comum entre a mãe pátria e esta província. E, em paralelo, contribuíram para a criação de condições de cooperação pacífica e progresso regional, na Ásia-Pacífico.

A política belicista e a duplicidade dos últimos governos dos EUA, em que os seus atos já não correspondem às palavras e compromissos internacionais, conduziram o próprio Secretário de Estado Henry Kissinger, a afirmar ao Wall Street Journal (13 de agosto), “Estamos à beira da guerra com a Rússia e a China, face a crises que nós próprios em parte criámos, sem nenhuma perspetiva de como vão acabar ou a que devem conduzir”.

Em alternativa, o presidente Xi Jinping, reforçando o princípio de que a China não busca o hegemonismo, propôs na Conferência Anual de 2022 do Fórum de Boao para a Ásia, a Iniciativa de Segurança Global, como o caminho comum para resolver os atuais conflitos e ameaças de confronto militar. O novo “princípio da segurança indivisível” está em consonância com os fundamentos da Declaração Universal dos Direitos do Homem: rejeita a política de construir a própria segurança em detrimento da segurança de outros, recusa o conceito estratégico oposto que levou à criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e do Pacto de Varsóvia, e à escalada da Guerra Fria.

O acordo de pacificação das relações ente a Arábia Saudita e o Irão, tal como o alargamento da parceria dos Brics, evidenciam que o multilateralismo é uma aspiração comum de todas as nações que viveram oprimidas pelos diversos imperialismos modernos e que a diplomacia da RPCh corresponde a esse desejo profundo de paz e cooperação.

Igualdade e benefícios recíprocos

Entre 2016 e 2017, os serviços de apoio ao Senado dos EUA coligiram milhares de estudos e trabalhos publicados sobre a China e os senadores puderam discutir seriamente a realidade da RPCh, política, económica e social. Desse debate saiu a recomendação para que o governo federal incrementasse as relações diplomáticas e económicas com a China.

Mas as crises económica e financeira já lavravam antes da crise de Covid e, desta vez, tendo a Alemanha como epicentro. A crise nos EUA aproximava-se. Na União Europeia, nos EUA, no Japão e no Reino Unido, o crescimento económico assentou na expansão do crédito e no aumento da emissão de papel-moeda, no quadro da concentração do capital que gera sobre produção de bens e serviços e o empobrecimento da classe média e dos trabalhadores em geral. No caso dos EUA, a passagem para a autossuficiência energética, foi feita através do recurso ao fracking, a extração de gás e petróleo do xisto que provoca incomensuráveis custos ambientais. As empresas gigantes americanas aproveitaram então as medidas de contenção da pandemia, para intensificar a automação, a robotização e o recurso à Inteligência Artificial: perderam-se 40 milhões de postos de trabalho, que foram sendo substituídos por empregos mal pagos e precários, numa recuperação económica efêmera que apresenta números baixos de desemprego, mas esconde a realidade.

Um novo discurso político passou a dominar a liderança do Partido Republicano: a culpa do declínio americano devia-se a três razões: as políticas sociais e de emigração, os maus acordos com o Canadá e o México, a concorrência desleal da União Europeia e da China. Um presidente foi eleito, com esta narrativa, dominante nas agências de notícias e redes sociais, controladas pelos novos oligarcas. E o novo presidente do partido democrata, seguiu-lhe os passos.

No ano de 2021, dois documentos estabeleceram estratégias opostas para o mundo. O denominado “Plano de Ação Estratégica face à China, para combater a ameaça colocada pela República Popular da China”, da responsabilidade do Departamento de Segurança Interna (DHS), dos EUA. E a Iniciativa de Desenvolvimento Global, proposta pela RPCh,  de que falaremos adiante.  Aquele plano é a chave para entender a intensificação de campanhas hostis sobre Hong Kong, Xinjiang e Taiwan, e incidentes como a suspeição em torno da tecnologia 5G.  O plano americano proclama o objetivo de salvar a América, anuncia a restrição e vigilância policial de todas as atividades e cidadãos da China nos EUA e preconiza uma parceria global alargada a todos os continentes, incluindo o Ártico, mas também o espaço sideral, com a mesma intenção negativa. O Acordo Global de Investimento China-UE, foi a primeira vítima desse plano agressivo. Tal facto explica porque a China acusa os EUA de empurrar o sistema internacional para o rumo da “dessínização”, elevando o estatuto do G7 e desvalorizando a importância do G20 e lançando novos acordos multilaterais que excluem a China, como o Diálogo de Segurança Quadrilateral e a Plataforma Económica Indo-Pacífico para a Prosperidade.

Neste contexto, de crise eminente e de conflitos militares que trazem consigo novos fatores recessivos, é uma má ideia tentar provocar uma recessão na economia chinesa, quando os EUA e a União Europeia podem entrar em recessão, e a Alemanha, a locomotiva da Europa, já entrou.

Segundo a avaliação conjunta do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, desde 2016 a China tem ultrapassado os EUA em paridade de poder de compra (PPC). A República Popular da China alcançou a erradicação da pobreza em 2020, com um balanço de 850 milhões de cidadãos do país retirados da pobreza extrema, desde a sua fundação em 1949. Sem o contributo do PIB da China, em permanente crescimento, o mundo já teria entrado em recessão em 2016.

Da segurança indivisível, ao desenvolvimento sustentável global e à preservação de todos os ramos do tronco comum da civilização

A Iniciativa de Desenvolvimento Global (GDI), e a reforma do sistema financeiro internacional, proposta pela China no Debate Geral da 76ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas em 2021, visam concretizar a Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. Devido a desafios como a pandemia de Covid-19 e conflitos regionais, o mundo afastou-se ainda mais do cumprimento do prazo acordado globalmente. Mais de 100 países puderam beneficiar de projetos de cooperação em oito áreas-chave: alívio da pobreza, segurança alimentar, resposta à Covid-19 e vacinas, financiamento para o desenvolvimento, mudanças climáticas e desenvolvimento verde, industrialização, economia digital e conectividade, do Fundo Fiduciário de Cooperação Sul-Sul FAO-China ao Centro de Cooperação em Ação Climática China-Países Insulares do Pacífico.

Enfim, porque ganham crescente adesão os novos acordos multilaterais, face aos tratados internacionais vigentes e as instituições que os governam? A diferença, dos acordos Brics, Iniciativa Cinturão e Rota, RCEP, que anunciam uma Nova Era, reside, em primeiro lugar, no acesso ao comércio livre em pé de igualdade tal como ao crédito a juros baixos acessíveis de todos os parceiros; segundo, no respeito pela decisão soberana de cada um sobre a escolha dos seus projetos económicos estratégicos e o modelo de regime de governação (com vários tipos de democracia); terceiro, na posição da China como parceiro que não procura a hegemonia, porque abdica de criar mecanismos que lhe podiam garantir essa hegemonia.

A contribuição decisiva da China para combater a crise ambiental e na proteção da natureza, mereceu recentemente o reconhecimento da própria Comissão Europeia: “Congratulo-me com o papel de liderança que a China desempenhou na garantia do histórico acordo Kunming-Montreal sobre Biodiversidade Global. E algumas semanas atrás, a China também foi um participante ativo no acordo global para proteger a biodiversidade em águas internacionais. Num momento de conflito e tensão global, essas são conquistas diplomáticas notáveis – nas quais a China e a União Europeia trabalharam juntas”, afirmou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, na Conferência no Mercator Institute for China Studies and the European Policy Centre, no dia 30 de março de 2023. Para concluir: “Existem algumas ilhas de oportunidade nas quais podemos construir… a diplomacia ainda pode funcionar – seja na preparação para uma pandemia, na não proliferação nuclear ou na estabilidade financeira global… A China é um parceiro comercial vital…” Eis um conselho avisado, que os EUA não deviam ignorar.

A Iniciativa de Civilização Global proposta pela China na Reunião de Alto Nível do PCCh em Diálogo com os Partidos Políticos Mundiais em 2023, enriqueceu a estratégia para construir uma comunidade global com um futuro partilhado, ganhando nesta década, maior acuidade. A China proclama: defendemos o respeito pela diversidade das civilizações. Os países precisam de defender os princípios da igualdade, da aprendizagem mútua, do diálogo e da inclusão entre as civilizações. Defendemos os valores comuns da humanidade. Paz, desenvolvimento, equidade, justiça, democracia e liberdade são as aspirações comuns de todos os povos. Defendamos a importância da herança e da inovação das civilizações. multipliquemos os intercâmbios e cooperação internacionais robustos entre as pessoas.