A província de Hunan surpreendeu, nos anos 80, a comunidade acadêmica com a descoberta de uma escrita chamada Nv Shu. Nv significa mulher e Shu, escrita, escrever ou documentos escritos, assim, Nv Shu poderia ser traduzido literalmente como escritura feminina. Trata-se de um tipo de escrita com traços simples, em ordem de cima para baixo e da direita para a esquerda, sem pontuação nem parágrafo, cujo domínio e utilização se restringem apenas às mulheres da região de Jiang Yong, um distrito no sul da província de Hunan. É uma escrita inventada e utilizada pela mulher da região.
Com uma história longa, é de estranhar que só agora tenha sido descoberta pelos acadêmicos e que a sua circulação se tenha limitado às fronteiras da referida região. A resposta só poderá ser encontrada na tradição muito particular do povo que habita naquelas paragens. Na verdade, as mulheres de Jiang Yong possuem um costume muito antigo: criar em si uma aliança pactuária. Depois de passar por um ritual, a mulher considera todas as demais como suas irmãs e os laços que estabelece são mais fortes e íntimos do que aqueles que mantém com as próprias irmãs de sangue.
Uma fraterinidade e uma amizade quase religiosa levam-nas a apoiarem-se reciprocamente o quanto mais possível tanto nos casamentos e labores de toda ordem, como nos funerais. Para uma relação assim tão estreita, logo se fez sentir a necessidade de um instrumento especial de comunicação capaz de lhes servir de veículo para as suas mensagens, capaz de exprimir sentimentos muito peculiares, capaz, por fim, de vedar o seu entendimento a outras pessoas, especialmente aos homens. Assim foi inventada a escrita feminina, que se transmite apenas da velha à jovem, da mãe à filha, ou ainda por entre as irmãs pactuárias.
Quando surgiu a escrita feminina? Até hoje, ninguém consegue responder a pergunta. Os habitantes da região limitam-se a dizer que isso é um assunto "da mãe, da avó e da visavó". A dona He Jinghua, de 64 anos de idade, sabe ler e escrever a escrita feminina. Seu filho disse que a mãe é alfabetizada no chinês, mas sabe ler e escrever uma "língua estrangeira". Para ele, formado num curso universitário, a escrita da mãe é esquisita e enigmática e ele próprio nem quer saber seu conteúdo porque "é coisa das mulheres". Em princípios dos anos 50, a comunicação na escrita feminina foi proibida porque alguns quadros forasteiros a entendiam como "código secreto".
A escrita feminina foi feita, sobretudo, em leques e lenços. Nestas mensagens, estão escondidos os contos, poemas, tristeza, alegria e as palavras íntimas entre as irmãs pactuárias. São obras escritas num estilo ingénuo, derivado diretamente da vida, por isso mesmo, muito veraz, e permitem-nos, portanto, ter uma noção bastante fidedigna do perfil de toda uma comunidade que dela fez uso.
Ao morrer, as mulheres faziam-se acompanhar de todos os seus pertences escritos em escrita feminina, que deveriam ser incinerados para lhes poderem servir no mundo do além, razão pela qual há, hoje, raríssimos documentos que comprovam a sua efetiva existência.