Discriminação Racial e Desigualdade Social nos Estados Unidos: a Corrupção da Democracia
A discriminação racial e suas implicações sociais e políticas são fenômenos de longa data na história dos Estados Unidos da América. No século XIX, o fim do sistema escravocrata foi um dos pivôs para a eclosão de sua guerra mais sangrenta, cujos efeitos e símbolos se fazem sentir até os dias atuais. Embora ainda sejam o país mais poderoso do mundo, eventos recentes evidenciam uma enorme vulnerabilidade em seu prestígio: o risco de ruptura de seu tecido social. Em grande medida, essa fragilidade deriva de problemas como a discriminação racial e a desigualdade social em um contexto de crise da democracia representativa e de corrupção de suas instituições.
Segundo o Censo dos Estados Unidos, atualmente os afro-americanos correspondem por 13,4% do total da população, sendo o terceiro segmento mais numeroso, atrás apenas dos brancos (76,3%) e latinos (18,5%). Os negros americanos constituem uma grande minoria, expressiva na sociedade daquele país. Contudo, a significativa participação dos negros no conjunto da população americana contrasta de forma severa com os números de sua condição social e econômica, sendo por isso um desafio para a qualidade da democracia.
Para clarificar melhor esse argumento, apresentamos alguns dados sobre emprego e acesso a saúde, pois são fundamentais para fazermos inferências sobre renda, inserção social e desigualdade nos Estados Unidos. País com forte tradição centrada na iniciativa individual, historicamente viu com desconfiança experiências mais próximas do coletivismo, como a cobertura social de um estado de bem-estar social reinante na Europa no pós-Segunda Guerra Mundial. Como resultado, o acesso a benefícios sociais é normalmente atrelado à condição do cidadão quando empregado. Esse dado ilustra bem a relação entre desigualdade racial e econômica. Em 2019, o desemprego entre afrodescendentes foi de 6,1%, vindo a subir para 11,4% em 2020. Comparativamente, entre trabalhadores brancos, o desemprego atingiu 3,3%, em 2019, e 7,3%, em 2020. Outro exemplo que ilustra o quadro de desigualdade sistêmica entre pobres e ricos, negros e brancos é o sensível tema do acesso à saúde. Enquanto apenas 5,4% de brancos não tinham acesso ao seguro saúde, 9,7% de negros se viam fora da cobertura desse serviço essencial em tempos de pandemia.
Dois aspectos devem ser destacados aqui. Primeiramente, antes mesmo do início da pandemia da Covid-19, momento no qual a economia dos Estados Unidos estava em boas condições na administração Trump, o desemprego entre os negros era mais que o dobro daquele registrado entre a população branca. Em 2020, com a pandemia em curso, ocorreu a deterioração dessa situação para todos, mas mesmo esses impactos foram desigualmente distribuídos entre os segmentos raciais da sociedade. O desemprego entre afro-americanos ultrapassou os dois dígitos e a exclusão do acesso a saúde foi quase o dobro entre afro-americanos quando comparado à população branca.
Os dados explorados acima ajudam a compreender que a inserção dos negros na economia e na sociedade americana ainda é um desafio atual na agenda política do país. Também denominada de desigualdade sistemática ou sistêmica, a desigualdade social, em particular a sua expressão racial, é entendida como um problema estrutural nos Estados Unidos. Essa condição é importante, pois impacta não apenas a vitalidade de sua economia, mas também a qualidade de sua democracia. Embora conquistas recentes possam ser comemoradas, como a legislatura federal racial e etnicamente mais diversa da história (117th Congress), o sistema político americano – denunciado como elitista, branco e plutocrata – é percebido como corrompendo a democracia americana, tendo na questão racial um aspecto saliente.
Se, por um lado, o aumento da representação política da minoria afro-americana é uma realidade. Em um sistema eleitoral em que vigora a regra majoritária, a capacidade de representação de minorias pode ser sensivelmente reduzida. Assim, dificulta-se que pautas e preferências convergentes entre eleitores negros e ação política de seus representantes resultem em mudança política pela via legal e institucional. Talvez, nenhum tema capte tão bem o drama da representação política de minorias expressivas do que o problema da violência policial e da corrupção do sistema de justiça criminal do país.
Há pouco mais de um ano ocorreu um evento que produziu fortes repercussões para a vida política e social dos Estados Unidos da América. Em 25 de maio de 2020 George Floyd Jr., um afro-americano, foi assassinado durante uma ocorrência policial. O trágico evento foi filmado por pedestres, divulgado nas redes sociais e teria como efeito incendiar a mobilização do já conhecido movimento Black Lives Matters (BLM, em português: Vidas Negras Importam). Entretanto, o que este evento infeliz nos diz sobre os dilemas contemporâneos da sociedade, política e economia americana?
Observando o caso sob uma perspectiva mais ampla, George Floyd era um afro-americano, desempregado, de origem humilde e com histórico de problemas com a justiça. Por outro lado, os policiais que conduziram a fatídica operação eram em sua maioria brancos e contavam com a retaguarda histórica do apoio corporativo e legal para condutas percebidas como excessivas por parte de movimentos de direitos humanos. Essa percepção deriva de um entendimento de que o sistema de justiça criminal, como consequência da política que o edifica e sustenta, é essencialmente corrupto quando no trato da população negra e pobre do país. Pensando nos termos da teoria da democracia, embora a população negra tenha conquistado elevar a sua representação política, ainda possui claros óbices em tornar seus representantes plenamente responsivos às suas demandas mais urgentes.
Autor: Augusto W. M. Teixeira Júnior, Cientista Político (PPGCPRI/UFPB)