Os EUA querem dar lições aos outros, enquanto são o país que mais viola os direitos humanos no mundo
Por José Reinaldo Carvalho (*)
Mais uma vez, a comunidade internacional se depara com a proclamação por parte da Casa Branca de que um dos aspectos centrais de sua política externa, durante a administração do presidente Joe Biden, será a "defesa dos direitos humanos".
Na história remota e recente, essa questão sempre vem à tona como pretexto para atacar terceiros países, promover sanções e bloqueios, golpes, intervenções e outras ações desestabilizadoras.
Apesar de estarem em suas funções há apenas três meses, o atual chefe da Casa Branca e seu Secretário de Estado já usaram a questão dos direitos humanos para ofender chefes de Estado e ameaçar países, entre estes a China, a Rússia, o Irã, Cuba e a Venezuela. Políticos estadunidenses, além do presidente e do secretário de Estado também proclamam a primazia da luta pelos direitos humanos como aspecto central da vida política internacional. Um recente documento do Senado dos EUA também estabelece a necessidade de se adotar uma estratégia de "contenção da China", sugerindo como pautas prioritárias para a realização desse fim a questão dos direitos humanos e a provocação de instabilidade política no território do grande país asiático.
Tal postura governamental e de círculos políticos estadunidenses é uma flagrante violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, cujo princípio fundamental é a autodeterminação dos povos e nações, o que implica a livre escolha dos seus sistemas políticos.
Para além disso, o uso do pretexto dos direitos humanos para justificar ações hostis contra outros países ignora outro princípio fundamental, qual seja o de que as políticas de direitos humanos no mundo não são homogêneas, mas concebidas e aplicadas em conformidade com as peculiaridades nacionais e os sistemas econômico-sociais. É desinformação ou má fé atribuir a países como China e Cuba, para citar dois exemplos, a condição de violadores dos direitos humanos, quando a própria ONU e outros organismos multilaterais aplaudem as políticas pró-ativas que esses dois países desenvolvem nesse terreno. Proteger os direitos humanos é antes de tudo defender o direito à vida, promover políticas públicas voltadas para o desenvolvimento social, destacadamente o combate à pobreza, aspecto em que a China é reconhecidamente o exemplo mais edificante no mundo.
Feitas essas considerações, é necessário ressaltar que não assiste moral aos Estados Unidos para apontar o dedo acusador a ninguém no que se refere a direitos humanos, por se tratar do país que é o maior violador desses direitos no mundo, algo que já ficou comprovado pelos crimes de lesa-humanidade que cometeu sistematicamente dentro e fora de seu território ao longo da história.
Os Estados Unidos são o país do racismo estrutural, da discriminação da população afrodescendente vítima de violações diuturnas de seus direitos humanos que muitas vezes se expressam através de crimes hediondos, como foi o assassinato do cidadão de pele negra George Floyd, em 25 de maio do ano passado, em Minneapolis, que motivou maciças manifestações de protestos. Anteriormente nos anos de 2012, 2014 e 2015, para citar os episódios mais recentes, foram assassinados outros cidadãos negros, inclusive menores de idade, em Sanford (Flórida), Ferguson (Missouri), Utah e Ohio. Essas violações são uma herança do escravismo que vigorou naquele país até a segunda metade do século 19.
Um dos aspectos mais sombrios a revelar a violação dos direitos humanos nos Estados Unidos é o sistema judicial, com a maior taxa de encarceramento do mundo, mais de 700 pessoas por 100 mil habitantes. Isto é várias vezes a taxa de pessoas encarceradas em qualquer outro país. Os negros e hispânicos, que são cerca de 30% da população masculina americana, representam 60% dos presidiários, em mais uma indicação do racismo estrutural. (1)
Outro dado revelador de violações sistemáticas dos direitos humanos nos Estados Unidos é o confinamento em regime de solitária nas prisões. Estima-se que mais de 80 mil pessoas estão presas em regime de isolamento, em instalações com precária ventilação e sem luz natural (2). Muitos acusados de um crime são mantidos na prisão por longos períodos antes do julgamento, pois não podem pagar a fiança. Além disso, muitas pessoas recebem sentenças de prisão prolongadas por crimes menores. Há muitos casos de presidiários cumprindo sentenças de décadas ou até prisão perpétua meramente por furto em lojas.
Outro indicador da gravidade das violações aos direitos humanos nos Estados Unidos é que mais de meio milhão dos seus cidadãos dormem nas ruas. Cerca de 27 milhões de pessoas não têm seguro de saúde e por volta de outros 60 milhões têm planos de saúde precários, sendo considerados como “subsegurados” (3).
Nos Estados Unidos, não há um sistema único de saúde, isto é, uma rede articulada com um propósito comum, mas sim uma série de programas estaduais independentes pouco conectados entre si. Cada uma das 50 unidades federativas tem o próprio sistema. Dentro deles, o principal operador é o mercado, que atua com pouca regulação e portanto com reduzido alcance para a parte mais vulnerável da população.
A pandemia de covid-19 evidenciou as falhas desse sistema, com trágicas consequências sociais - a morte de mais de 560 mil pessoas. Com apenas 4% da população mundial, os EUA têm até agora 20% das mortes por covid-19 de todo o mundo (4).
O menosprezo pela universalidade dos direitos humanos nos EUA se manifesta também nas limitações do seu sistema político e eleitoral, que não é exemplo de democracia como habitualmente se propala. Trata-se de um sistema que institucionalizou a bipolarização, comprometendo sua representatividade e a participação política dos cidadãos, um sistema que reflete os interesses das grandes corporações econômicas e financeiras.
No plano externo, os Estados Unidos violam os direitos humanos através de atos intervencionistas, que vão desde a espionagem aos golpes, atos de ingerência, assassinatos de líderes políticos e guerras propriamente ditas, sendo o mentor e autor material de intervenções militares em diversos países do mundo. É um histórico que vem de longa data, desde o surgimento da nação como república independente, que se adensou ao longo do século 20. Os episódios mais notórios dos últimos anos foram as guerras no Golfo e a guerra no Afeganistão, que acarretaram em seu conjunto, além das perdas militares, centenas de milhares de mortes de civis.
Quase todas essas ações em todos os continentes foram levadas a cabo sem a aprovação da ONU e mesmo sem a aprovação do Poder Legislativo estadunidense.
Para além de tudo isso, os EUA atuam no plano global à margem do multilateralismo, apesar de muitas vezes o defenderem no plano retórico. É um país que se recusa a assinar a maioria dos acordos multilaterais e invariavelmente não reconhece o direito à paz e ao desenvolvimento de outras nações.
Os Estados Unidos são, assim, um país que viola os direitos humanos e se coloca frontalmente contrário à tendência principal de nossa época, que é o esforço pelo desenvolvimento compartilhado por toda a humanidade.
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(1) Abreu, Antonio, "Como nos EUA se trituram direitos humanos fundamentais", publicado no sítio "Abril", em 7 de abril de 2021[https://www.abrilabril.pt/internacional/como-nos-eua-se-trituram-direitos-humanos-fundamentais]
(2) Ozorio de Melo, João, "Consultor Jurídico", publicado em 3 de agosto de 2019 https://www.conjur.com.br/2019-ago-03/eua-presos-usam-justica-melhorar-condicoes-vida
(3) "Como a falta de um sistema universal de saúde prejudicou a resposta americana à pandemia", publicado no site AGRI em 20 de julho de 2020 [https://socgastro.org.br/novo/2020/07/como-a-falta-de-um-sistema-universal-de-saude-prejudicou-a-resposta-americana-a-pandemia/]
(4) Dados do Worldometers em 13 de abril de 2021 [https://www.worldometers.info/coronavirus/country/us/]
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(*) Jornalista, editor internacional do Brasil 247 e Secretário Geral do Cebrapaz - Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz