
As credenciais do novo embaixador brasileiro na China, Marcos Caramuru de Paiva, são bastante conhecidas nos círculos governamentais e diplomáticos do Brasil, que o qualificam como um dos maiores especialistas brasileiros em China. Formado em Administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Caramuru ingressou no Itamaray em 1975 e foi promovido a Ministro de Primeira Classe, o cargo mais alto da carreira diplomática, no ano 2000. Ao longo da sua carreira, foi secretário de assuntos internacionais do Ministério da Fazenda no governo de Fernando Henrique Cardoso, diretor executivo do Banco Mundial, embaixador na Malásia e cônsul-geral em Xangai. Já aposentado, Caramuru se dedicava à sua consultoria quando foi convidado a assumir a embaixada brasileira na China em junho passado. Carioca, com 62 anos, ele recebeu nossos editores em Pequim para a entrevista que se segue.
China Hoje – Ao longo de sua carreira de diplomata e consultor com forte presença na China, como o senhor vê a evolução das relações entre brasileiros e chineses?
Marcos Caramuru – Penso que, de maneira geral, as pessoas estão mais maduras em suas percepções em relação à China e ao Brasil. Antes havia apenas um conhecimento geral de China, da importância deste país no mundo, do que estava acontecendo no comércio e investimentos, mas agora é possível notar um amadurecimento de vários pontos de vista, apesar de haver ainda uma carência de informações. Está crescendo no Brasil o número de think tanks e instituições que estudam a China sob diferentes aspectos, como o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), a Fundação Getulio Vargas (FGV) e mesmo entidades como o Instituto FHC, em São Paulo, fundado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ao mesmo tempo, há think tanks na China com interesse crescente no Brasil. Finalmente, várias instituições financeiras e grandes empresas no Brasil tem suas próprias unidades de pesquisa, prestam muita atenção à China. Eu percebo isso porque toda vez que vou ao Brasil e mesmo quando era consultor na China, já havia um número muito grande de pessoas com quem conversar.
China Hoje – E qual seria a razão deste interesse crescente pela China?
Marcos Caramuru – Sem dúvida é porque o crescimento da China tem um grande impacto no crescimento mundial: algo entre 30 a 35% . É inevitável que o mundo todo preste atenção no que acontece na China. A segunda razão é que há um fluxo crescente de investimentos chineses para o Brasil. Muitos bancos têm seus portfólios dedicados a fusões, aquisições e financiamento de investimentos, o que torna obrigatório acompanhar de perto a China, seu crescimento e impacto no crescimento global e no comércio bilateral. Há também instituições que se dedicam a estudar a realidade chinesa e mundial numa perspectiva de mais longo prazo.
China Hoje – Qual é a atual visão do Brasil em relação aos BRICS?
Marcos Caramuru – É uma visão positiva, naturalmente. O BRICS tem amadurecido cada vez mais. Os países membros partiram da ideia geral de que os emergentes deveriam ter uma participação mais significativa na voz e no capital das principais instituições financeiras internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e outras. Em seguida, criaram suas próprias instituições, como o NDB (Novo Banco de Desenvolvimento) o Banco BRICS, que está operando em Xangai. Agora, estamos evoluindo em direção a decisões mais abrangentes no âmbito da agricultura, proteção ambiental e no seguimento dos grandes temas da vida internacional, no papel que o BRICS pode ter e na contribuição que pode dar para a paz e segurança mundial. Ainda é um processo de amadurecimento, mas já são muitas as demonstrações significativas de ação.
China Hoje – Qual delas é a mais relevante, na sua opinião?
Marcos Caramuru – O Banco BRICS é a mais importante delas até o momento, sem dúvida. Mas há uma grande expectativa quanto ao que acontecerá este ano na reunião na China, no início de setembro. Os chineses estão interessados em trazer para a agenda do BRICS tópicos que possam evoluir para ações mais concretas, e isso é muito interessante. Recentemente tivemos reuniões com o Ministério da Indústria e Comércio da China, o MOFCOM, exatamente para discutir como preparar uma agenda de ações mais concretas.
China Hoje – Como o senhor vê a importância do BRICS internacionalmente?
Marcos Caramuru – O mundo está atualmente mais atento ao BRICS. É o resultado do amadurecimento do grupo, não apenas em suas decisões internas mas também nas suas posições sobre temas globais.
China Hoje –Mas os críticos do bloco costumam apontar inúmeros problemas...
Marcos Caramuru – Claro que existem problemas e circunstâncias de curto prazo. A China e a Índia estão crescendo a taxas muito mais elevadas que os demais membros, incluindo o Brasil. O grupo foi criado em um período em que todos os seus membros estavam crescendo a taxas elevadas. Mesmo no caso da China, as taxas de crescimento são menores do que costumavam ser, ainda que continuem muito mais altas em comparação à média das taxas de crescimento dos demais países. No caso do Brasil, a economia está se ajustando pouco a pouco e esperamos que em 2017 já tenhamos um crescimento, ainda que pequeno, em torno de 0,5% a 0,7%.
China Hoje – Estes problemas que o BRICS enfrenta seriam, então, ligados exclusivamente às dinâmicas internas dos seus membros?
Marcos Caramuru – Não, há outro ponto que afeta muito o BRICS: o fato de a economia internacional estar ainda sofrendo o impacto da crise de 2008. Ainda há muita incerteza no mundo. O cenário é incerto e cambiante. Há o problema do envelhecimento populacional, da redução da demanda em diferentes países, de uma aversão a investimentos. A economia internacional está enfrentando um período de interrogação, e isto ainda sem falar no Brexit, ou na nova administração dos Estados Unidos. O mundo está sujeito a fatores muito menos positivos do que os que prevaleciam à época da criação do BRICS. É um período de grandes ajustes.
China Hoje – Considerando esta nova realidade, que novas propostas o Brasil vai trazer para a agenda do BRICS?
Marcos Caramuru – Estamos discutindo a agenda. E caberá à China um grande papel na definição dessa agenda, pois compete ao país que sedia a reunião presidencial liderar as propostas. O Brasil tem enfatizado, em reuniões passadas, tópicos como agricultura e proteção ambiental.
China Hoje – O Novo Banco de Desenvolvimento, como o senhor mencionou, é uma iniciativa concreta dos BRICS. Além deste banco o Brasil também é membro fundador do BAII (Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura). Quais são as vantagens para o Brasil em participar destas iniciativas? Elas se inserem dentro de algum tipo de estratégia de política externa brasileira para a Ásia?
Marcos Caramuru – No Banco dos BRICS os interesses do Brasil são mais diretos porque queremos não apenas participar do desenvolvimento do banco, como também tomar recursos. O NDB, como é sabido, capta recursos do mercado para serem realocados aos países sócios e temos um interesse direito em conseguir fundos para projetos de infraestrutura no Brasil. No caso do BAII, nossa participação tem a ver com uma visão de futuro. Vemos o BAII como a semente de algo que vai crescer e se tornar uma instituição com impacto mundial. E vemos a perspectiva de desenho de uma nova ordem até lá. Quando nós participamos dos debates de Bretton Woods, após a Segunda Guerra Mundial, estávamos convencidos de que "o que se forjava ali tinha a ver com a Europa, e não com o resto do mundo." Erramos. O Brasil aderiu às instituições de Bretton Woods porque era inevitável. Entendemos que o BAII terá um futuro muito mais abrangente e um impacto que irá extrapolar a Ásia. E é por isso que estamos participando desde já desta iniciativa.
China Hoje – No final do ano passado, vimos a controvérsia sobre o reconhecimento da China como economia de mercado dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Alguns países desenvolvidos se recusam a dar esse status à China. O Brasil vê alguma ameaça concorrencial na concessão deste status à China?
Marcos Caramuru – O Brasil não vê como uma ameaça. Essa é uma discussão muito complexa porque exige uma interpretação legal dos acordos da OMC. O Brasil tem usado medidas de defesa comercial de um modo muito responsável e iremos adotar medidas antidumping quando necessário, mas sempre com um senso de responsabilidade, lógica e não discriminação. Estamos em uma discussão aberta com as autoridades e organismos encarregados do assunto na China. O que temos visto é que a partir de 11 de dezembro passado há uma nova realidade, claramente diferente da anterior. Há uma discussão dentro do OMC sobre esse tema que estamos acompanhando bem de perto e vendo qual será o resultado.
China Hoje – Esta discussão está se dando exclusivamente no âmbito da OMC?
Marcos Caramuru – Há uma discussão também muito positiva dentro do G20 e em outros foros sobre o excesso de oferta de vários itens. Tenho prestado particular atenção na questão do aço, que é um bom exemplo, mas o debate sobre o excesso de oferta, vai além disto. Quando a economia internacional e a China estavam crescendo a taxas muito elevadas, foram feitos enormes investimentos em inúmeros setores. Com a retração da economia internacional, após a crise de 2008, o mundo se deu conta que havia excesso de abastecimento em várias áreas. A discussão que já começou dentro do G20, mas que tem que ser aprofundada, seja no G20, seja em outro fórum.
China Hoje – O Brasil foi, em 2016, o terceiro país que mais recebeu investimentos chineses, atrás apenas dos EUA e Suíça. Que novos setores em potencial ainda podem receber investimentos chineses num futuro próximo?
Marcos Caramuru – Em primeiro lugar, infraestrutura, uma área onde temos grandes necessidades e historicamente baixo volume de investimento. A segunda área seria agricultura e outros setores com potencial, mas creio que vamos assistir algo verdadeiramente novo na interação econômico-comercial a partir das joint ventures que estão se formaram no setor financeiro.
China Hoje – Como assim?
Marcos Caramuru – Um dos desenvolvimentos significativos do fluxo de nos investimentos econômicos entre Brasil e China é o número de novas joint ventures entre instituições financeiras chinesas e brasileiras. Antes, vários bancos chineses se estabeleceram no Brasil com patentes novas, como o ICBC, o Banco da China, o Banco de Desenvolvimento da China (CDB). Em seguida, alguns bancos chineses compraram bancos brasileiros, como, por exemplo, o Construction Bank que adquiriu um grande banco no Brasil. Agora, há um novo fluxo de bancos e instituições financeiras chinesas ingressando no Brasil através da aquisição de capital de bancos e instituições financeiras brasileiras, mas operando em conjunto com os administradores brasileiros. É o caso, por exemplo, do Bank of Communications que comprou o Banco da Bahia; é o caso da FOSUN, uma instituição financeira que comprou a Rio Bravo, é o caso Haitong Bank, de Xangai, que comprou o Banco Espírito Santo, de Portugal, muito ativo no Brasil e, com isso, indiretamente adquiriu uma instituição brasileira. Essas joint ventures têm produzido algo inteiramente novo porque são instituições financeiras com capital brasileiro e chinês, majoritariamente chinês, mas administradores brasileiros, que conhecem muito bem a nossa realidade.
A ação dessas novas instituições financeiras, com um lado brasileiro e um lado chinês, produzirá uma maior integração entre Brasil e China.
China Hoje – Falando de investimentos em infraestrutura, o governo chinês propôs, em 2015, a construção de uma ferrovia transoceânica que liga Brasil e Peru visando facilitar o comércio via Oceano Pacífico. Como está o andamento deste projeto?
Marcos Caramuru –Trata-se de um projeto de muito peso, que está no seu estágio inicial de discussões técnicas entre as equipes brasileira e chinesa. Há vários aspectos técnicos que ainda precisam ser equacionados antes de qualquer decisão formal para se seguir adiante. O Brasil tem abordado a ideia com o senso de que é uma iniciativa audaciosa. Ainda não estamos inteiramente a par de todos os elementos necessários para uma decisão. Mas as discussões técnicas já estão acontecendo. E há outro país envolvido, o Peru, cujo interesse está obviamente fora da nossa esfera de decisões.
China Hoje – Que tipo de suporte a Embaixada Brasileira e o Ministério das Relações Exteriores oferecem aos brasileiros que querem importar, exportar ou investir, ou que estão trabalhando na China?
Marcos Caramuru – Esse é um trabalho diário. As pessoas contatam a Embaixada a fim de conhecer melhor fornecedores, compradores, taxas e regras. Temos uma seção aqui que recebe questões sobre isso todos os dias. A segunda coisa é que temos ajudado muito companhias a participar de feiras e exibições na China. Há pelo menos duas feiras importantes na área de alimentos, agricultura e alimentos processados, das quais participamos todos os anos. Mas também temos ajudado companhias brasileiras a participar de muitas outras feiras aqui. O terceiro ponto é que organizamos visitas, em geral, lideradas pelos Ministros. Nessas visitas, realizamos rodadas de negócios e reuniões bilaterais. A mais recente foi no final do ano passado, quando o Ministro da Agricultura do Brasil trouxe uma delegação importante na área de alimentos, alimentos processados e commodities. Visitamos Shenzhen, Guangzhou, Chongqinq, Pequim e Xangai acompanhados por um grupo de empreendedores. Não há mágica. Fazemos basicamente o que a maioria dos países faz: fornecemos o suporte diário aos nossos empresários, Participamos de feiras e exibições, e, finalmente, atendemos pedidos especiais dedicados a certos setores.
China Hoje –Na área de turismo, está aumentando o fluxo de viajantes entre Brasil e China?
Marcos Caramuru – Turismo é um pouco mais complicado porque a geografia não ajuda. Estamos muito longe da China, o que dificulta atrair um grande fluxo de turistas chineses para o Brasil. São dois dias para ir e dois dias para voltar e os chineses não tem férias muito longas. Um segundo ponto é que, em grande parte, somos mais conhecidos pelo turismo no litoral, nas praias. Estamos nos dando conta, pouco a pouco, de que os chineses têm um apreço especial por florestas, por regiões mais campestres. Precisamos fazer melhor.
China Hoje – Como reverter esta situação?
Marcos Caramuru – Creio que à medida em que a renda geral aumentar na China, as pessoas terão mais tempo para visitar lugares diferentes e irão descobrir melhor o Brasil. Mas já se nota que mais e mais turistas chineses estão indo para o Brasil e Argentina ou outros lugares da América Latina. Uma viagem tão longa se justifica visitando vários países. Não creio que podemos ter expectativas no curto prazo. A ideia geral dos turistas chineses é primeiro visitar a Ásia, o sudeste asiático, e depois a Europa e os Estados Unidos, para finalmente explorar outros lugares, como a América do Sul. Chegaremos lá.
China Hoje – Durante os longos anos em que o senhor tem vivido na Ásia e na China em particular, o que o senhor aprendeu com a cultura chinesa?
Marcos Caramuru – Decerto aprendi muito, mas não o suficiente. A China é um país muito complexo e é preciso muito tempo para conhecer os chineses. Primeiramente, a cultura de negócios na China é diferente da de outros lugares, em que pese que ela está mudando muito rapidamente. Os chineses estão ficando cada vez mais preparados para entender as realidades externas. Outra coisa que aprendi é que quando os brasileiros e chineses se encontram nas negociações comerciais, acabam sempre tendo uma surpresa muito positiva. Tenho ouvido com frequência as pessoas dizerem: "cruzei o mundo na expectativa de ver algo completamente diferente da minha realidade aqui, mas vejo que são muito parecidos conosco".
China Hoje – Mais similaridades do que diferenças.
Marcos Caramuru – Sim, mais semelhanças do que diferenças. E o espírito das pessoas é bem parecido. Recentemente houve um jantar na embaixada com uma companhia chinesa que adquiriu a maioria das ações de uma companhia brasileira. Estavam juntos brasileiros e chineses, celebrando como antigos amigos. Há mais um ponto: quando fazemos uma análise da China, temos que ser capazes de focar o futuro. Quase sempre, para se analisar uma realidade, olha-se para o passado. Na China, você tem que tentar compreender o que virá, o que é sempre mais complicado do que entender o passado. O maior desafio em lidar com a China é entender o futuro. Se você não fizer um esforço nesse sentido, é impossível obter bons resultados.
China Hoje – Que tipo de trocas culturais o senhor espera entre a China e o Brasil? Há atividades culturais sendo planejadas?
Marcos Caramuru – Estamos preparando planos para este ano. Basicamente, estamos nos concentrando no futebol, que é algo que nos aproxima cada vez mais. Há um interesse crescente pelo futebol na China, e esse será um ponto importante.
China Hoje – Apenas futebol?
Marcos Caramuru – Não. Nosso segundo foco é a música. A maioria dos chineses ouve a nossa música sem saber que é brasileira, pensam que estão ouvindo jazz ou algo semelhante. Divulgar a música brasileira é mais fácil de se fazer, porque basta associar algo que as pessoas já conhecem do Brasil.
China Hoje –Teremos também algo novo?
Marcos Caramuru – Estamos tentando também fazer algo na área da arte em geral, basicamente pintura. No ano passado, três ou quatro curadores chineses estiveram no Brasil com o objetivo de descobrir nossos melhores nomes na arte contemporânea. Ainda estamos trabalhando nesse projeto a fim de produzir algo que seria significativo aqui. Muitas vezes, um intercâmbio cultural requer preparação de longo prazo. Quando se tem dinheiro, é fácil. Mas o Brasil está passando por um período de restrição orçamentária, o que nos obriga a ir fazendo as coisas aos poucos. E temos que melhorar naquilo que já fizemos no passado.
China Hoje – Quantos estudantes brasileiros há na China atualmente?
Marcos Caramuru – Creio que em torno de 60. Esse número já foi muito maior, mas devido a restrições financeiras, o programa de envio de alunos ao exterior foi reduzido consideravelmente. É surpreendente ver quantos jovens brasileiros estão aprendendo chinês e passando algum tempo na China. E me surpreendo também com o aumento dos cursos de português na China. Creio que os jovens que estão estudando nossos idiomas estão convencidos de que a interligação econômica dos dois países é uma proposta de longa duração, algo que irá crescer. Conhecer o outro idioma será uma boa ferramenta para encontrar empregos no futuro. As oportunidades estarão lá para quem dominar as duas línguas. E isso é ótimo.
Fonte: China Hoje, edição brasileira de China Today, Ano 2, Nº11, Fevereiro/Março, 2017