"Comecei há muito tempo atrás, muito menino ainda, pelo Kong Fu, fazer Kong Fu em São Paulo, no Brasil. E por conta do Kong Fu, comecei estudando um pouco da parte mais filosófica ligado a Kong Fu, ligado a Laozi, ligado a essa parte mais da história chinesa, o que foi me abrindo mais a cabeça para a tradição chinesa. Depois de algum tempo, ainda muito jovem, comecei a fazer Tai Ji, um outro estilo de Tai Ji, ligado a outra família que é chamado de estilo da família Yang."
Este é o Givanildo Rodrigues de Paula, praticante brasileiro de Tai Ji Quan. Ele veio em setembro do ano passado à aldeia Chenjiagou na província de Henan, para aprender esta arte tradicional chinesa no local onde nasceu o Tai Ji. Duas semanas depois de sua chegada, Gil assistiu a uma cerimônia de discípulo, o que lhe impressionou e mudou o rumo de sua vida.
"logo na segunda semana que estava treinando em Chenjiagou, eu assisti uma cerimônia de discípulo de uma colega da Rússia inclusive, uma colega de treino e aí era tudo muito novo pra mim. Era um estilo diferente de tai ji, eu nunca tinha visto uma cerimônia dentro de um templo chinês, uma cerimônia de discipulado, aí eu assisti a cerimônia e fiquei extremamente emocionado com a cerimônia, pelo ritual mesmo e pela toda a cerimônia, pelos detalhes e de alguma forma eu me senti tocado e me senti levado a, foi uma viagem no tempo pra mim, como se eu estivesse assistindo algo muito muito antigo. E aí, desde aquele dia eu fiquei, eu cultivei no meu coração esse desejo de me tornar discípulo,"
O tempo foi passando, Gil prosseguia treinando Tai Ji junto com seus colegas chineses. A cada dia, ele descobria a vila e fazia novos amigos, ele até que ganhou um nome chinês: Chen Dahei. Chen é o sobrenome da família Chen, que deu nome também a aldeia. Da significa grande e Hei, preto, já que ele é grande e tem a pele escura. Satisfeito com seu novo nome, Gil fez um carimbo com os três ideogramas: Chen Dahei. Na aldeia, quase todos conhecem esta figura grande e sempre sorridente. Depois do treino matinal, Gil costuma fazer uma caminhada pela aldeia, brincando com as crianças, conversando com o dono da quitanda e observando a moça que faz o pãozinho mais delicioso da vila. Apesar de ter um chinês bem limitado, ele não viu muito obstáculo para se comunicar na vila.
"E como eu tava dizendo é uma vila pequena, é uma vila muito simples e de pessoas incríveis e mesmo com a dificuldade do idioma. Isso é uma coisa que ficou muita clara a primeira vez que eu vim pra China, mesmo não falando o idioma se duas pessoas têm vontade genuína e interesse de coração de se comunicar, a comunicação acontece, mesmo não existindo domínio do idioma. Eu percebi isso há 10 anos atrás quando eu vim pra China a primeira vez e em Chenjiagou isso acontece o tempo inteiro, eu não falo o dialeto local, muito menos falo mandarim, mas existe elementos na comunicação que faz com que essa comunicação aconteça, é um olhar, é uma conexão de coração."
Na verdade, a vida na aldeia não é tão estranha para Gil. Nascido num pequeno povoado do nordeste brasileiro, Gil trabalhou por alguns anos na Amazônia depois da graduação com trabalhos sociais e formando professores e posteriormente em São Paulo dando aulas de Tai Ji.
"eu sou de uma região do Brasil que é o nordeste brasileiro, sou de um estado chamado Alagoas, de um município chamado Lagoa da Canoa e de um povoado chamado Mata Limpa, um povoado muito pequeno, tão pequeno quanto Chenjiagou. Vivi nesse povoado até os meus 8 anos de idade, minha família é uma família simples, todos, meu avô, meu pai, minha mãe são todos agricultores, pequena agricultura familiar. Então desde muito pequeno a minha relação com a terra e com coisas simples é muito muito grande. Então vir pra Chenjiagou de alguma forma foi me reconectar com a minha própria história, a minha origem no Brasil,"
Para Gil, ele chegou até aqui porque seus pais se constituíram como casal, construíram uma relação e tiveram seus filhos, por isso, há um sentimento de gratidão muito grande em relação aos seus pais.
"porque meus pais tinham o desejo de dar uma condição de vida diferente para os filhos. Nos anos 80 morar no nordeste era um desafio muito grande, ainda hoje você tem regiões no nordeste que sofrem com falta d'água, com falta de comida, mas naquela época tinha crises de falta d'água e de seca muito grande e aí por conta disso meu pai e minha mãe decidiram ir pra São Paulo, ir para a cidade grande para dar oportunidades para os filhos. Por conta dessa escolha dos meus pais eu sou extremamente agradecido a eles por terem deixado a vida deles, deixado a origem deles em Alagoas, pensando nos filhos, pensando em dar uma condição melhor para os filhos. Isso é uma outra coisa importante dentro da tradição chinesa, o quanto a gente tem que valorizar os nossos pais, o quanto a gente tem que valorizar os nossos avós e o quanto a gente tem que valorizar os nossos antecessores."
A vida em Chenjiagou é tranquila. Às oito da manhã, Gil começa o treino com o pai do mestre, que é o Chen Xiaoxing. É um treino que dura meia hora, que eles chamam de postura da árvore ou postura estática. Às nove horas, ele começa seu treino com o mestre que termina às onze e meia. À tarde, o treino recomeça às duas e meia e encerra às cinco e meia. Durante os treinos, ele foi conhecendo melhor instrutores, e estreitando seus laços com seu mestre, a família e os amigos. Ele comentou com seus amigos de treino sobre a vontade de se tornar um discípulo e imaginava que isso poderia acontecer em um ano, dois anos ou mais. Até que um sábado em dezembro, Gil teve uma grande surpresa.
"eu fui num sábado almoçar com o mestre, eu e a família de um grande irmão de treino aqui e durante esse almoço o tema do almoço era a cerimônia de discípulo que ia acontecer no domingo e aí no final do almoço eu fiquei sabendo que ia ter a cerimônia de discípulo e que eu estava incluso na cerimônia de discípulo."
A felicidade chegou tão rápido! Ao ouvir a novidade, Gil não acreditou. Ele iria se tornar discípulo de um mestre tão tradicional, da família mais tradicional de Tai Ji! Ele refletiu muito sobre a responsabilidade de ser um discípulo. À noite, tentou se acalmar e meditar um pouco e no domingo por fim, aconteceu a cerimônia....
"A cerimônia como já falei é muito tradicional e é um momento muito especial porque é o momento que você estabelece um voto com o mestre, e mestre passa a ser o seu pai de treino dentro da arte marcial, então ele deixa de ser um simples professor para se tornar um pai dentro da tradição chinesa e um pai é para vida toda, um professor você pode às vezes trocar de professor de instrutor, mas um pai é para vida toda."
Segundo Gil, o mestre sempre foi muito exigente nos treinos, então no dia a dia, ele sentiu que aumentou um pouco a exigência, pelo fato de ter se tornado discípulo e de alguma forma é assim que as pessoas vão lhe ver no Brasil. Então sentiu que a sua responsabilidade agora é muito grande.
"a grande mudança que eu percebi, foi, eu acho que eu tive uma mudança interna mesmo, eu comecei a perceber melhor as relações familiares deles, comecei a enxergar melhor a minha relação com a esposa do mestre, com os filhos, com os amigos mais próximos do mestre. Teve essa mudança de ampliar as relações e teve também essa mudança do olhar do mestre na minha direção, de mais exigência, de cuidar mais do meu treino"
O mestre de Gil, Chen Ziqiang, da Escola de Tai Ji Quan em Chenjiagou é guardião da linhagem da 20ª geração do Tai Ji Quan do estilo Chen. Desde pequeno, aprendeu com seu pai, Chen Xiaoxing, mestre da 19ª geração do clã Chen. Desde que começou a recrutar discípulos em 2006, foram aceites mais de 30 pessoas, a maioria chineses, mas ele também permitiu alguns estrangeiros como franceses e britânicos. Para o mestre Chen Ziqiang, a primeira e a mais importante qualidade para se tornar discípulo é a boa virtude e conduta. Falando sobre seu primeiro discípulo brasileiro, o mestre Chen Ziqiang disse:
"Ele é uma pessoa muito aplicada. Há dois dias, teve uma disenteria. Mal tomou remédios, voltou a treinar. Ele respeita muito o instrutor e sua instrução. Conhece bem a cultura chinesa e é disciplinado. Se tiver algo para resolver, pede sempre licença. Apesar de ainda não dominar bem a língua chinesa, dá para compreendê-lo. É muito gente boa."
" Muito gente boa" também foi a avaliação de Hu Yingjie, amigo do treino do Gil. O jovem de 20 anos vem de Guangzhou, capital da província de Cantão, sul da China. Era dançarino profissional. Mas devido a um problema na espinha, teve que parar de dançar. Veio à aldeia para se recuperar e aprender Tai Ji Quan. Ele chegou uma semana mais tarde que Gil, mas logo os dois viraram bons amigos. Aos olhos de Hu Yingjie, Gil é um irmão atencioso e cuidadoso.
"Ele é muito bondoso. Consegui aprender muita coisa boa com ele, ser gentil e afetuoso com outros. Este brasileiro me deu uma impressão completamente diferente dos estrangeiros. Se tiver oportunidade, irei ao Brasil para ver se todos são iguais a ele (riso)."
Diferentemente de Hu Yingjie que planeja aprender Tai Ji Quan em Chenjiagou por mais três anos, Gil terminou seu curso e voltou para o Brasil em março. Em São Paulo, ele tem um centro de cultura oriental que ensina Tai Ji Quan, Gong Fu, Qi Gong, acupuntura, massagem e mandarim. O nome chinês, Shao Sheng Hong Wen, foi dado por um taiwanês radicado no Brasil. Shao significa herdar, Sheng é sublime, enquanto Hong significa divulgar, e Wen representa a cultura chinesa. Neste centro, estão acessíveis não só as artes tradicionais chinesas como também filmes e seminários, em que, as pessoas podem conhecer a civilização e a cultura milenar chinesa. Desde sua criação em outubro do ano, há mais de 90 matriculados. Quando chegar ao Brasil, Gil pensa em dar palestras aos alunos, contando sua experiência em Chenjiagou.
"Pausa, eu acho que um grande aprendizado pra mim nesse período aqui em Chenjiagou, que eu já venho trazendo de algum tempo atrás da minha experiência no Brasil, mas aqui eu acho que ele se concretizou, se materializou. Eu acho que a gente vive na sociedade um processo, uma corrida contra o tempo, pra dar conta das coisas, pra dar conta do trabalho, pra dar conta da casa, do celular, do tablet, dos amigos e é tudo muito rápido. Então há uns dois meses atrás eu estava fazendo tai ji e ai me passou um insight na mente, o tai ji é uma arte da pausa, é uma arte que te possibilita por alguns minutos pausar, e ao fazer essa pausa você percebe sua respiração, ao perceber sua respiração você perceve com mais clareza como está sua mente e consegue organizar melhor o fluxo de pensamentos para poder também tomar decisções, dá o passo a seguir. E aqui em Chenjiagou o ritmo é muito tranquilo, a vila tem uma rotina, os barulhos daqui são semelhantes dia após dia, e sempre dentro de um pulsar muito da própria vila."