Na passagem de 2010 pra 2011 tive duas experiências bem interessantes e privilegiadas aqui na China. Conto a segunda num post futuro.
Em 31 de dezembro fui para Xangai passar o Réveillon. Como todos sabem, os chineses não têm o hábito de comemorar essa data. A verdadeira virada de ano para eles é o Ano Novo Chinês, que obedece a um calendário próprio e acontece em dias não-fixos, como é caso do Carnaval e da Páscoa.
Fomos eu, meu marido, minha sogra e uma amiga, repórter de uma tevê brasileira. A opção mais atraente e típica de Xangai para passar a virada era uma festa no tradicional templo budista Longhua, que tem mais de 17 séculos de história. A Patrícia aproveitou pra fazer uma matéria sobre como aqueles budistas há tempos comemoram o Ano Novo. O status de jornalista nos rendeu uma série de privilégios, que incluíam "guias", espécie de assessores de imprensa destacados pela prefeitura municipal para nos ajudar no que fosse preciso. E eles foram excepcionalmente atenciosos.
Chagamos lá por volta das 21h, debaixo de uma lua linda e um frio de lascar! Cerca de 3 graus, mas muito pior do que os -7 que fazia em Beijing. Culpa da umidade e do vento, que derruba a sensação térmica. E também do tempo a que ficamos expostos ao frio. Depois de servir um cafezinho e nos credenciar (sem aquilo, teríamos de pagar cerca de 60 dólares para estar ali), o staff nos levou a um dos salões do templo, onde se apresentavam músicos de guqin, um instrumento de cordas tradicional chinês que produz um som belíssimo. A plateia era composta apenas por convidados, autoridades, figuras sociais importantes e monges. Enquanto os músicos desfilavam suas habilidades, as pessoas nos enchiam de mimos, chá, frutas, balas. Éramos os únicos estrangeiros ali.
Depois de apreciar também números da Dança do Dragão, óperas e outras atividades ao vivo, e ao ar livre, apesar do frio, fomos ao restaurante do templo comer o "macarrão da longevidade", um espaguetão grosso e super comprido que não pode ser cortado até que a ponta final esteja em dentro de sua boca, um metro depois. "Mandingas" locais de Ano Novo.
Às 23h30, o momento mais esperado. Tinha início ali a primeira das 108 badaladas do sino sagrado, que mede 2 metros de altura por 1,3 de diâmetro. As 107 badaladas simbolizam, segundo Buda, as aflições a serem redimidas pela 108a, dada à meia-noite. Faltando cinco minutos para o grande momento, me perdi de todos em meio à multidão. Fiquei desesperada! Porque não fazia sentido estar num lugar daqueles, com um super clima, um ambiente místico, e passar a meia-noite sozinha. Na busca por eles, entrei num salão com duas saídas e uma imagem gigante de Buda dentro, e subi num patamar alto para ter uma visão mais privilegiada. E o que eu vi ficará guardado para sempre na minha memória: centenas de pessoas com incensos nas mãos, fazendo reverências em sincronia ao Buda que estava logo atrás de mim. Me senti o próprio Buda!
Meia-noite em ponto, a 108ª badalada ecoava, eu estava sozinha, sem família para me abraçar nem máquina fotográfica para registrar aquele momento. Eu era única ali a quem o "badalo redentor" trouxe, em vez de sorte e paz interior, a primeira tormenta de 2011.