Visão-Ucrânia: Tudo se perde, quando se perde a paz

Fonte: CRI Published: 2022-02-21 17:19:54
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Autor: António dos Santos Queirós, professor e pesquisador da Universidade de Lisboa

Autor: António dos Santos Queirós, professor e pesquisador da Universidade de Lisboa

Conhecer a realidade histórica, para confrontar a propaganda belicista

Na Ucrânia estamos perante dois problemas distintos, embora correlacionados: a situação da população russa que habita historicamente as províncias de Lugansk e Donetsk e a península da Crimeia, e a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para Leste.

Aquelas regiões são habitadas por mais de 8 milhões de russos e sempre o foram, ao longo da história, juntamente com outras minorias. Integraram-se na Ucrânia por iniciativa do governo de Khrushchov (que ali nasceu e foi líder), em 1954, para servirem de base ao desenvolvimento industrial e facultar à Ucrânia soviética o acesso ao Mar Negro e de Azov.

Para compreender as origens do conflito temos de analisar a política externa das potências envolvidas, a Rússia e os EUA, numa perspetiva geoestratégica.

Nesta perspetiva, citaremos (JE_11.02.2022) Carlos Branco, major-general e investigador universitário, que desempenhou altos cargos nas missões da ONU e da Otan, e foi subdiretor do Instituto de Defesa Nacional.

O mundo não precisa de uma Nova Guerra Fria

A velha doutrina americana sobre a Guerra Fria (Kennan, Spykman, Brzezinski) criou a teoria dos pivôs geopolíticos. Controlar a Ucrânia, a Geórgia ou a Bielorrússia, permitiria isolar a Rússia e reduzi-la ao estatuto de país menor.

Os EUA intervieram abertamente nas convulsões políticas da Ucrânia com esse objetivo, promovendo a ascensão do presidente pró-EUA Yushchenko (2005). Por iniciativa da Administração Bush, na Cimeira de Bucareste em 2008, a Otan convidou a Ucrânia e a Geórgia a aderirem à aliança.

Citemos agora o major-general Carlos Branco: “Dirigentes e analistas políticos russos – incluindo reformistas liberais – têm vindo ao longo dos anos a avisar, que tornar a Ucrânia ou a Geórgia clientes securitários dos EUA ou membros da Otan seria cruzar uma linha vermelha, que resultaria um perigo de guerra…advertências ecoadas por Kennan, Kissinger...”

Entretanto, na Ucrânia, a correlação de forças mudou com a eleição em 2010 de Yanokovitch, um presidente que logo foi diabolizado como pró-russo. Lideradas pelo partido neonazista Svoboda, manifestações violentas substituíram os protestos populares contra os efeitos da crise econômica, e criaram uma situação de quase guerra civil. A diplomacia conjunta da França e da Alemanha conseguiu em 2014 estabelecer uma trégua e um acordo que marcou eleições antecipadas para outubro, com vista a encontrar uma solução política.

“Mas o presidente foi derrubado em 2014 através de um golpe de estado orquestrado por Washington, perpetrado por grupos paramilitares neonazistas, colocando no poder grupos nacionalistas ucranianos antirrussos”, afirma ainda Carlos Branco.

O presidente e os seus deputados fugiram para salvar a vida, e num parlamento semivazio autonomeou-se um governo integrando grupos neonazistas. Sinalizando a sua política, decretaram a proibição do uso da língua russa e das minorias polaca e romena. A diplomacia europeia reconheceu os golpistas como governo legítimo.

Quem semeia vento, colhe tempestade (Provérbio Popular)

Os acontecimentos posteriores foram marcados pelo confronto militar nas províncias do leste, que receberam apoio militar da Rússia face à ofensiva do exército ucraniano, pela separação da República da Crimeia, que regressou à Rússia e pelos acordos de Minsk (2014/2015). Alcançado o cessar-fogo, o parlamento ucraniano não concretizou nenhuma das medidas de autonomia prometidas às autoproclamadas Repúblicas de Lugansk e Donetsk e foi a própria Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) que supervisiona o cessar-fogo, que denunciou os preparativos militares do atual governo da Ucrânia para uma ofensiva militar em fins de 2021, a que a Rússia respondeu com a concentração de tropas na fronteira.

Segundo Carlos Branco, a possibilidade de um conflito armado existe, mas “o objetivo das forças russas dispostas ao longo da fronteira com a Ucrânia é impedir a chacina da população russa ucraniana, caso as forças ucranianas cruzem a linha de confronto, o que poderia provocar uma reação militar russa imediata”.

A diplomacia europeia deve ter a paz como objetivo

“O comportamento da Administração Biden leva-nos a crer que o seu objetivo é criar um pretexto, não para retaliar militarmente, mas para impor pesadas sanções econômicas à Rússia. Esta conduta insere-se numa linha de pensamento, que defende a possibilidade dos EUA travarem uma guerra convencional vitoriosa com a Rússia e a China, sem que esta escale para o patamar nuclear, assumindo que consigam controlar todas as variáveis do problema”, escreveu Carlos Branco.

De facto, Biden censurou a Alemanha por não ter enviado armamento, mas exigiu o abandono do gasoduto Nord Stream 2", como os governos Obama e Trump, sob pretexto da dependência da Rússia. O objetivo dos EUA é tornar-se o principal fornecedor de gás (liquefeito) da Europa, matando dois coelhos com a mesma cajadada: dar saída à sua produção excessiva, por fracking do xisto, altamente poluente, e arruinar a economia russa.

É aquela estratégia que explica as sanções económicas contra a China, a interferência nos seus assuntos internos, dificultando a reintegração de Hong Kong e promovendo o separatismo em Taiwan, a criação de alianças militaristas como o AUKUS.

“Em vez de promover uma guerra por procuração para atingir a Rússia, os EUA deveriam procurar reforçar as relações bilaterais entre os dois países, recuperar das cinzas o Tratado sobre Forças Armadas Convencionais na Europa (CFE), energizar o Documento de Viena, regressar ao Tratado dos Céus Abertos e recuperar o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio”, conclui Carlos Branco.

Tiremos lições das trágicas e desastrosas intervenções militares no Afeganistão, no Iraque, na Síria e na Líbia, com milhões de mortos e refugiados, a expansão do terrorismo, que chegou à Europa e se disseminou em África.

A União Europeia deve deixar de alimentar o complexo militar-industrial dos EUA, que está a destruir a democracia americana e a minar a sua economia e necessita de semear a guerra, para absorver a fatia maior do orçamento americano. Sob a égide da ONU e da OSCE, deve divulgar e debater as propostas da Rússia sobre a pacificação da Ucrânia e as relações com a Otan, a fim preservar a paz, controlar a pandemia e alcançar a recuperação econômica.


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