A ascensão pacífica da China incomoda
(*) José Nelson Bessa Maia
O rápido e sustentado crescimento da China tem sido um dos elementos mais relevantes na evolução da economia global nos últimos 40 anos. Esse dinamismo e vigor têm contribuído não só para apoiar o crescimento econômico mundial, mas também para alterar a geopolítica e a governança do sistema internacional. No entanto, esse avanço pacífico da China desperta em alguns círculos dominantes no Ocidente o receio de eventuais mudanças na atual ordem internacional vigente desde 1945, com a perda de influência de algumas velhas potências econômicas diante da ascensão de importantes economias emergentes como a China.
Apesar do papel estabilizador da China e de sua postura responsável nos mercados globais, o seu papel crescente como grande importador, investidor e provedor de cooperação externa para os países menos desenvolvidos vem causando não só admiração pelo modelo chinês nos parceiros em desenvolvimento, mas também desconforto em países considerados avançados da Europa e da América do Norte. A iniciativa chinesa do Cinturão e Rota (BRI) voltada para impulsionar o comércio e a integração econômica entre os países que a compõem tem sido frequente alvo de críticas por parte de lideranças e think-tanks de países ocidentais.
Na recente 48ª Cúpula do G7 na Alemanha (26-28 de junho) foi anunciada uma iniciativa global de infraestrutura para países em desenvolvimento. Os EUA pretendem alavancar US$ 200 bilhões para o programa nos próximos cinco anos por meio de uma combinação de recursos públicos e do setor privado. A União Europeia, por seu turno, comprometeu-se com 300 bilhões de euros. Juntamente com as contribuições dos demais membros, a meta geral seria atingir um orçamento de US$ 600 bilhões. Não obstante, no caso dos EUA, a frágil situação fiscal e elevada dívida dificultará a obtenção de recursos para o programa, o que poderá torná-lo um projeto inviável.
Na verdade, o objetivo da iniciativa do G7 é buscar reduzir a crescente influência da China no mundo por meio dos seus significativos fluxos de comércio, investimento e de ajuda externa com as economias em desenvolvimentos. O plano visa, portanto, a competir com a BRI, oferecendo financiamento para projetos de infraestrutura. O plano foi apresentado pela primeira vez na Cúpula do G7 do ano passado na Grã-Bretanha, mas pouco avançou e foi agora renomeado. Deixou de ser apelidado de “Reconstrução de um Mundo Melhor” (B3W) para ser chamado de “Parceria para a Infraestrutura e Investimento Global” (PGII), após a implosão da agenda doméstica do presidente Joe Biden no Congresso americano.
Autoridades dos EUA afirmam insistentemente que os países que firmam acordos da BRI com a China acabam caindo numa armadilha do endividamento e estariam, portanto, em contrapartida oferecendo o plano do Ocidente como alternativa. Todavia, os EUA são notoriamente ruins em investir e manter sua própria infraestrutura física, de modo que não faz sentido tentarem construir projetos de infraestrutura no exterior. A China, ao contrário, é mais experiente e rápida na construção de grandes obras públicas, não apenas no seu território, mas também em todo o mundo. Além disso, os projetos da BRI se concentram na conectividade mútua, no ganha-ganha para ambos os lados, na contribuição para o desenvolvimento local e regional e na inclusão social. Por isso as empresas construtoras chinesas dominam as concorrências dos principais credores de financiamento a infraestrutura, como o Banco Mundial e outros bancos regionais de desenvolvimento. Dos 20 maiores empreiteiros de construção no mundo, 14 estão na China, seis estão na Europa e nenhum está nos EUA.
Com relação aos ataques dos EUA de atribuir à BRI "armadilhas da dívida", análise do Banco Mundial conclui que, se todos os projetos de infraestrutura de transporte do Cinturão e Rota forem realizados, até 2030, a iniciativa chinesa gerará US$ 1,6 trilhão em receitas para o mundo, ou 1,3% do PIB global. E até 90% das receitas resultantes do funcionamento dos projetos serão compartilhadas pelos países parceiros, beneficiando mais as economias de baixa e média renda. Além disso, entre 2015 e 2030, 7,6 milhões de pessoas sairão da pobreza extrema e 32 milhões da pobreza moderada. Além dessas previsões, segundo o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, nenhum dos países parceiros do Cinturão e Rota endossou a narrativa de que "a BRI cria armadilhas da dívida”. Trata-se, portanto, de mais uma tentativa de desqualificar as relações de novo tipo que se processam entre a China e o mundo em desenvolvimento.
No contexto pós-pandemia, o mundo caminha para uma fase de ampliação mais acentuada da participação dos países emergentes na economia global. Isso pressupõe mudanças geoeconômicas e de governança no sistema internacional, com o declínio relativo do poderio econômico de alguns países e o avanço de outros, com uma tendência de deslocamento do poder geopolítico do Atlântico Norte rumo ao Pacífico e ao continente asiático. Essa tendência de natureza estrutural precisa ser entendida como um elemento benéfico de regeneração civilizatória e não como um jogo de confronto entre o ocidente e o oriente. A ascensão pacífica da China, dentro de uma década, à posição de maior economia e de polo dinâmico do crescimento, deve ser encarada como uma renovação e não como retrocesso da ordem internacional. Os tempos de guerra fria ficaram para trás. O mundo deve seguir avançando.
(*) José Nelson Bessa Maia é economista brasileiro, mestre em Economia e doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador independente das relações China-Brasil, China-Países Lusófonos e China-América Latina.