Uso crescente da moeda chinesa no mundo e sua participação nas reservas internacionais do Brasil
(*) José Nelson Bessa Maia
Há mais de meio século o dólar dos Estados Unidos da América (EUA) é a principal moeda de reserva usada no comércio, finanças e investimentos internacionais. Tal prática torna a economia global dependente da moeda americana e confere aos EUA um poder sem igual, um verdadeiro “privilégio exorbitante”. Mas depois da crise global de 2008, gerada nos EUA, esse cenário começou a mudar. Conforme Barry Eichengreen, respeitado historiador econômico, essa posição encontra-se ameaçada pela rápida ascensão de economias emergentes (como China, Índia, Rússia e Brasil) e, no momento, com as reações às sanções impostas pelos europeus e americanos contra a Rússia pelas operações militares em curso na Ucrânia.
Na verdade, como pano de fundo, a participação do dólar nas moedas de reserva esteve em constante declínio nos últimos 20 anos (caindo de 69% para 55% do total), na medida em que os bancos centrais recorrem com frequência a moedas não tradicionais, incluindo o renminbi, para diversificar suas carteiras de ativos. Mais recentemente, os gestores de reservas têm reduzido sua exposição ao dólar em duas direções, com um quarto indo para o renminbi e três quartos para moedas de países menores (Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Suíça) que tradicionalmente têm desempenhado um papel limitado como ativos de reserva.
Essa tendência se reforça diante das repercussões de sanções econômicas ora impostas contra a Rússia em resposta às operações militares na Ucrânia, o que desencadeou um debate sobre a continuidade do predomínio do dólar nas finanças e no comércio globais e mais, se o conflito acelerará o uso mais amplo de outras moedas de países emergentes como o renminbi como moeda de reserva. Os dados mais recentes da Sociedade para Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (Swift) mostram que desde 2020 o renminbi permanece classificado como a quinta moeda mais usada para transações globais após o dólar americano, o euro, o iene japonês e a libra esterlina.
Diante do dinamismo econômico e da estabilidade financeira da China, a sua moeda se torna cada vez mais um instrumento negociável no mercado internacional, um meio de troca para liquidar transações globais, com sua proporção nos pagamentos internacionais subindo para 3,2% do total em janeiro de 2022, batendo o recorde estabelecido em 2015. E a moeda tende a servir como um porto seguro como reserva de valor por causa da recente volatilidade do mercado cambial global. O renminbi ocupava apenas a 35ª posição quando a Swift começou a rastrear dados de pagamentos globais em outubro de 2010. Agora, ocupa a quarta posição. Isso significa que o processo de internacionalização da moeda chinesa ganhou força nos últimos tempos.
À medida que a crise geopolítica na Ucrânia permanece, não se pode deixar de mencionar que o conflito russo-ucraniano está se tornando uma espécie de “guerra” entre instituições financeiras do Ocidente e da Rússia. Diante da impossibilidade dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) enfrentarem a Rússia militarmente utilizam-se de sanções financeiras para forçar o país a interromper o conflito bélico, congelando seus ativos e impedindo seu banco central de sustentar sua moeda e financiar suas empresas com parte das reservas de divisa do país aplicadas no Ocidente. Essa prática é uma faca de dois gumes pois enfraquece o dólar e abala a credibilidade das instituições financeiras ocidentais até então tidas como bens públicos internacionais. Cabe também notar, todavia, que essa guerra de sanções não é generalizada uma vez que nenhuma das outras nações do Brics (Brasil, Índia, China e África do Sul) está participando de sanções econômicas contra a Rússia.
No caso específico do Brasil, o seu Banco Central (BCB), em meio à turbulência externa, segue uma política prudencial na gestão de suas reservas internacionais avaliadas em US$ 362,2 bilhões (conceito de caixa) ou 22,6% do PIB no final de 2021. No ano passado, o BCB buscou diversificação na alocação de moedas das suas reservas internacionais, sem prejuízo do perfil anticíclico da carteira como um todo, quando comparado ao ano anterior. Com isso, o dólar canadense e o dólar australiano foram incluídos na alocação, com participações de quase 1% cada. Porém, a contribuição da moeda chinesa foi elevada para cerca de 5% da carteira (algo em torno de US$ 18 bilhões). Além disso, a posição em ouro foi elevada, passando a representar 2,25% do portfólio total.
A participação de ativos chineses nas reservas internacionais brasileiras ainda se encontra em patamares modestos. No entanto, na medida que a credibilidade do dólar continue a se deteriorar pelo uso geopolítico de sanções pelo governo americano e que o valor dessa divisa se torne ainda mais instável e volátil é possível que aumente mais significativamente a participação da moeda chinesa como ativo de reserva nas reservas cambiais do BCB, seguindo uma tendência alinhada aos demais países do Brics.
(*) José Nelson Bessa Maia é economista brasileiro, mestre em Economia e doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador independente das relações China-Brasil, China-Países Lusófonos e China-América Latina.