“A Cimeira pela Democracia - Summit for Democracy”? Pela hegemonia, contra a igualdade das nações e o direito internacional

Published: 2021-12-10 10:30:11
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A lista dos países e líderes convidados pessoalmente pelo presidente dos EUA nega, por si só, pelas suas descriminações e ausências, os três propósitos anunciados para a cúpula convocada pelo governo de Biden: Defender os países contra o autoritarismo. Enfrentar e lutar contra a corrupção. Promover o respeito pelos direitos humanos.

Logo ressalta o convite aos líderes de Taiwan e a exclusão da República Popular da China. Os acordos de 1º de janeiro de 1979, em que os Estados Unidos estabeleceram relações diplomáticas oficiais com a China, reconheceram formalmente seu governo como o único governo legítimo e Taiwan como parte da China, anunciando o fim das "relações diplomáticas" com as autoridades de Taiwan, a anulação do "Tratado de Defesa Mútua" e a retirada do pessoal militar. Esse estatuto foi reafirmado em todas as entidades internacionais, da Organização das Nações Unidas, à Organização Mundial do Comércio. Tal convite viola grosseiramente o direito internacional e ofende a soberania e unidade nacional da República Popular da China.

A segunda exclusão é a das próprias Nações Unidas e das suas agências, a quem pertence liderar a cooperação internacional para enfrentar os grandes desafios que a cimeira enuncia e que vão da Crise Climática e Ambiental, ao Combate ao Terrorismo, Direitos Humanos e Democracia, Saúde Global e Recuperação do Covid-19, Prosperidade Económica e Política Comercial, Energia, Refugiados e Ajuda Humanitária, entre outros.

Como é possível desprezar o contributo científico, técnico, político, dessas entidades e substituí-lo por convites discricionários a países, personalidades e empresas? No entanto, a União Europeia, como instituição, está na lista.

Há nesta iniciativa política, uma razão oculta: Os EUA querem manter a sua hegemonia mundial subalternizando o papel das Nações Unidas, que no passado controlaram, impor a sua visão hegemónica da ordem internacional e um modelo único de democracia.

Igualmente grave é a exclusão de países como a Rússia. Pode-se excluir da negociação relacionada com a energia e a crise climática, um país que é o principal exportador e segundo maior produtor de gás natural do mundo?

Ainda nesta área, como se pode afastar a China, que criou o Banco de Dados de Recursos do Novo Coronavírus 2019, colocando-o na Internet, de livre acesso? O país que descodificou o genoma e o colocou-o à disposição do mundo sem qualquer contrapartida, económica ou política? A nação que no período mais crítico da pandemia enviou especialistas e material médico de primeira linha para 89 países. E como assumir a proteção de Refugiados e Ajuda Humanitária, à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, se foi a política intervencionista dos EUA e alguns dos seus aliados europeus, quem criou as maiores vagas de flagelados da história contemporânea, para depois lhes negar os seus direitos, quando batem à porta das fronteiras fechadas?

O modelo neoliberal do regime dos EUA, de privatização e desregulação económica e financeira, acompanhadas pelo desmantelamento do estado social foi imposto a toda a América Latina e Central, muitas vezes através de golpes militares, permitindo ao capital dos EUA apoderar-se dos principais recursos regionais, mas tornando a pobreza crónica entre essas nações. Vagas de dimensão continental de milhões de refugiados políticos do centro e sul da América, vítimas das intervenções militares americanas, dos regimes autocráticos instaurados com o seu apoio, e da sua política neocolonial agravada pelas sanções, puseram-se então em marcha em direção à fronteira dos EUA.

Em paralelo, a intervenção militar e a invasão do Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia (e noutros conflitos menores na África), lideradas pelos EUA e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), provocaram mais de um milhão e duzentos mil mortos e mais de dez milhões de refugiados de guerra, dessas nações. Os seus países de refúgio são as nações vizinhas, apenas uma pequena parte demandou a UE. Mas nem a Turquia, o Líbano, a Jordânia, fazem parte da lista! Esquecida, ficou a Palestina e também Moçambique.

A política de emigração dos EUA, que inspirou os países do leste da UE, viola a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), tal como o fazem os países seleccionados por Biden: Polônia e República Tcheca já tinham sido condenados pelo Tribunal Europeu, por se recusarem a acolher os refugiados. O governo polaco, que tem destruído os alicerces da democracia liberal, vai construir mais de mil Km de muros em tudo semelhantes aos de Trump, em conjunto com a Lituânia e a Letónia. Na atual crise nas fronteiras leste da UE, esses governos recusam sequer prestar ajuda humanitária aos 3 a 4 mil seres humanos que foram barrados nas suas fronteiras.

Pese embora o PIB nominal dos EUA continuar a ser o mais elevado, ele é o mais mal distribuído do mundo, 1% dos americanos auferem 93,5% do valor do PIB (Fonte: Reserva Federal dos EUA). Segundo a Comissão de Direitos Humanos da ONU, na sociedade americana vivem 40 milhões de pobres, mas para as ONGs que trabalham na área social esse número sobe a 140 milhões, face aos elevados custos de bens essenciais como habitação, saúde e educação, que tornam irrelevante o valor do PIB per capita e correspondentes salários. No entanto, a cimeira despreza a experiência da China, que retirou da pobreza extrema 850 milhões de pessoas.

A cimeira afirma que visa combater o terrorismo e desenvolver a economia, mas a economia americana é hoje uma economia militarizada, em benefício da qual se têm multiplicado as intervenções bélicas e os défices orçamentais e vai em crescendo a guerra económica contra os seus próprios aliados: O protecionismo americano dirigido contra a economia da China, provocou colateralmente a contração do comércio mundial e graves danos na economia da União Europeia, que tem na China o seu principal mercado. Como resultado, a Alemanha apresentava um PIB estagnado ou negativo ao longo dos trimestres de 2019. O apoio de alguns governos europeus àquelas intervenções colocou a Europa numa situação de “guerra de baixa intensidade”, que o terrorismo representa.

O modelo de democracia liberal americano, um sistema de poder monopolizado por uma oligarquia de dois partidos (atualmente em crise), capturou o estado e serve-se dos seus formidáveis recursos para construir os seus oligopólios, bancos gigantes e fundos abutre, ainda mais poderosos. Mas já não consegue impor a sua hegemonia como dantes, precisa de voltar a ganhar popularidade e a cimeira pretende servir tal objetivo.

Nos EUA, a “Estratégia de Defesa Nacional” e a “Estratégia de Segurança Nacional” continuam a proclamar este país como potência hegemónica, que não cederá o seu domínio. As consequências desta politica de estado, já levaram a guerra militar, em simultâneo, ao Afeganistão, ao Iraque e à Síria, e inundaram a comunicação e as redes sociais de notícias falsas. Conduziram também a violentas batalhas pela recuperação da hegemonia económica, como o foi contra a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), lançada pelo aliado Arábia Saudita, ao provocar deliberadamente o dumping do valor do barril, devastando a economia da Rússia, do Irão, da Venezuela e também de Angola.

O mito do regime de democracia liberal como o melhor dos mundos, cai aos pedaços perante o egoísmo nacional e das multinacionais face à pandemia e às vacinas.

Noam Chomsky, uma grande figura da América democrática, avisa-nos: "A democracia dos EUA está moribunda, está de partida. Podemos ver isso no Congresso agora que está a debater a legislação que levaria os Estados Unidos, em alguma medida, na direção de social-democracia que é normal na Europa." (Entrevista ao jornal DN/RTP, 09.10.2021)

Por António dos Santos Queirós, professor e investigador. Universidade de Lisboa

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