Um farol para a retomada do crescimento
Por Luís Adolfo Pereira Beckstein, especialista em análise econômica e investimento estrangeiro do Brasil
A China foi o primeiro país do mundo a enfrentar a pandemia de COVID-19 e o primeiro a sair dela. Até aí nada de surpreendente. Mas o que chama a atenção é o ritmo da arrancada chinesa. Depois de um primeiro trimestre com queda de 6,8% no PIB, e de um segundo trimestre já com crescimento de 3,2%, a China apresenta ao mundo no terceiro trimestre um crescimento de 4,9%. No ano, o crescimento acumulado já está em 0,7%. O FMI recentemente divulgou a atualização de seu World Economic Outlook projetando um crescimento de 1,9%, neste ano, e 8,2%, em 2021. Esse número por si só já é relevante, mas chama ainda mais a atenção quando o colocamos em perspectiva com a previsão para o resto do mundo, com uma queda de 4,4%, neste ano, e um crescimento de 5,2%, no ano que vem.
Mais importante do que isso, os números apresentados pela Administração Estatal de Estatísticas da China, mostram que boa parte dos indicadores dos componentes do PIB estão em ascensão, sendo que muitos deles, inclusive, já viraram para o positivo no acumulado do ano.
Os hanzis (caráteres chineses) para crise (weiji) e oportunidade (jihui) compartilham o radical “ji” (机). Em chinês, assim como em português, o radical é parte da palavra que contém a sua essência. Essa questão linguística parece ser uma excelente metáfora para a chamada política da dupla circulação. Há anos o governo já vinha manifestando preocupação com o peso excessivo do investimento no PIB, tendo declarado em seu 13º Plano Quinquenal a intenção de aumentar a participação do consumo interno, e em especial, dos serviços. É provável que o 14º Plano enfatize e explicite ainda mais essa questão, como um caminho sem volta.
Essa mudança - mais do que satisfazer os asseios de uma população que tem tido sucessivos ganhos salariais ao longo dos anos - ajuda a solucionar uma questão que tem preocupado o governo central de Pequim e o mundo: a sobrecapacidade da indústria. Desde antes da pandemia, já estava claro que um crescimento focado no investimento iria agravar o problema do excesso de capacidade das empresas chinesas. O governo central vinha enfrentando essa questão com uma política de forte estímulo a fusões e aquisições e à consolidação de empresas, juntamente com o fechamento das plantas menos eficientes.
A pandemia de 2020, sem dúvida, está sendo a maior crise do século XXI, mas seguindo a máxima de enxergar oportunidade dentro da crise (o “ji” que eu citei acima), o governo central chinês decidiu acelerar esse processo com a chamada política da dupla circulação. Se antes parecia haver algum dilema na escolha entre priorizar o investimento ou o consumo interno, essa dúvida se esvaiu. Isso porque, dentre as principais economias do mundo, apenas a China deve apresentar crescimento neste ano. Então nada mais lógico do que focar no único mercado que cresce, que no caso, é o seu próprio mercado.
A economia da China já está em processo de retomada do crescimento, mas as bases para uma recuperação sustentada ainda precisam ser consolidadas. Dessa forma, o 14º Plano Quinquenal parece vir em um momento propício. Algumas estratégias que já vinham sendo implementadas, devem ser formalmente incluídas no plano e fortalecidas, como a dupla circulação e a ênfase no consumo e nos serviços. Outras questões que já constavam na versão anterior do plano devem ser mantidas, como a ênfase no desenvolvimento verde e o crescimento impulsionado pela inovação. Por fim, as novidades devem ficar por conta da outra perna da dupla circulação, com a exportação de serviços, e, muito mais importante, a estratégia chinesa para atingir maior grau de independência na batalha para enfrentar o bloqueio dos EUA. O mundo está muito atento ao que o 14º Plano trará, sabe que não pode prescindir da demanda chinesa e que o momento pede ampla cooperação entre os países para sair da crise.