No livro "Na mão de Deus", Paulina Chiziane relata a experiência de um internamento numa ala psiquiátrica. Em "Niketche: Uma História de Poligamia" a autora moçambicana fala de poligamia, da mulher e de sociedades patriarcais. Todo um universo, que a escritora partilhou com a Rádio Internacional da China num café na zona do Porto Interior, em Macau. Paulina Chiziane, uma das escritoras moçambicanas mais lidas e traduzidas do mundo, esteve durante uma semana no território para participar na Rota das Letras.
Não são só os olhos azuis claros e embaciados da escritora que chamam a atenção. É isso e muito mais.
Como é que se tornou escritora? Não sei, eu acho que foi a vida que me fez assim. Eu sempre fui uma pessoa que gosta de silêncio, da solidão e da observação, de tal modo que quando os outros dormiam, eu tinha sempre aquela tendência de ficar desperta a ouvir música, a fazer qualquer trabalho, a ler. Então, essa foi a primeira infância. A seguir foi o contato com os livros, com a escola e fui descobrindo a existência de outras formas de estar. Na minha solidão à noite gostava de pintar, fazer rabiscos de miúda e acreditava que um dia poderia pintar, mas as condições econômicas em que eu cresci nunca me poderiam permitir ter pincéis ou telas ou coisa parecida. Aliás, nem pensava nisso, estragava os cadernos, que deviam servir para um mês. Serviam para uma semana porque eu gastava-os a pintar coisas da minha cabeça.
Era introspectiva, não saía de casa para brincar com as crianças? Ficava sozinha? Eu saía. Sempre fiz as brincadeiras normais de toda a gente, mas guardava sempre um espaço para mim, sempre. E eu sou das noites, sou aquela mulher que não dorme desde a infância. Quando os outros dormem, é quando eu desperto.
Disse numa entrevista que havia dois fatores que jogavam contra si, ser africana e ser mulher. Enquanto escritora ou ser humano? Enquanto moçambicana ou enquanto cidadã global? Enquanto moçambicana, porque veja, nós estamos a sair de um processo que foi a colonização, um sistema que tinha a hierarquia de raças. Primeiro era o branco, depois era o mulato, depois era o negro. Então ser negro era um problema nessa sociedade, é algo que já está a desaparecer. E o fator ser mulher, ainda dentro do país. Mas isso é uma coisa que gradualmente vai desaparecendo, embora haja uma grande resistência da tradição, sobretudo da região patriarcal. Agora, a nível global, as duas coisas às vezes se manifestam, às vezes se diluem, mas eu confesso que nesse aspeto tive sorte. O fato de ser mulher e ser negra em algumas partes do mundo chama a atenção e as pessoas dizem, vamos lá ouvir o que é que diz essa voz, porque pode ser que traga alguma coisa de novo. Portanto, assim que fui para Portugal e outras partes do mundo, confesso que fora senti-me melhor, não sei porquê, mas senti-me melhor fora do que no princípio da minha luta dentro do meu país.
Mudaria alguma coisa no seu passado? Eu acho que cada tempo faz a sua lei. Para quem está no presente, o passado é passado e torna-se um mito, torna-se um lugar de conforto. Porquê? Porque nós estamos no presente e não estamos no passado. Falando da história de Moçambique, eu não sei se seria capaz de dizer que o meu passado é mais nobre que o presente. O passado foi cheio de guerras, cheio de lutas, cheio de conflitos e cheio de fraquezas e contravalores. Falando do meu passado, eu Paulina, com 57 anos, o passado do meu país teve traição dos próprios africanos que renegaram à sua cultura e entregaram-se de bandeja ao sistema português. Teve lutas muito fortes dos indígenas contra os assimilados, houve massacres, houve tudo isso. Eu venho desse passado. Entretanto, havia nobreza sem dúvida porque o que movia as pessoas a lutar por uma vida de maior liberdade é um valor que merece ser preservado.
Voltando um pouco atrás, a essa questão de se ser mulher. No livro Niketche: uma história de poligamia. Além de abordar o tema da poligamia, aborda o tema de ser-se mulher. É um tema que lhe interessa? Falando de Moçambique, a sociedade do sul de Moçambique foi criada com base num sistema poligâmico, que é o sistema do patriarcado. Eu venho do sul, observei muitas relações humanas, muitas mulheres e um homem e os conflitos que daí surgem. A Igreja Cristã, o sistema colonial e o sistema pós-colonial são monogâmicos, mas as pessoas vivem entre aquilo que é lei, religião e tradição. E acontecem muitas complicações. Os homens casam-se com uma mulher aos olhos do mundo, mas continuam a ter quatro ou cinco.
Como é que esse livro foi recebido? É o meu livro mais famoso, foi traduzido já para várias línguas, entre o inglês, francês e muitas línguas europeias. É um grande sucesso no Brasil. As pessoas receberam com surpresa porque é um livro agradável, fala de assuntos tristes com muita ironia.
Tem também uma vida com experiências muito profundas. Um dos seus livros está baseado numa experiência que a Paulina viveu, que foi um internamento numa ala psiquiátrica. Foi difícil manter a lucidez na escrita de uma experiência como essa tão profunda? Eu estava extra lúcida e foi o livro que me saiu com a maior facilidade do mundo. É claro que escrevi o livro quando já estava melhor, mas ainda estava entre dois mundos e foi muito fácil escrever os livros porque eu estava extremamente lúcida. É incrível, quando a gente se desloca do mundo normal, da vivência comum de todos os dias, a nossa lucidez parece que cresce. Foi o que se passou comigo, não sei dos outros casos, mas o meu caso foi esse, eu tive extrema lucidez. E acharam que eu estava doente, mas eu não sentia doença nenhuma (risos).
E em relação a este mundo lusófono e a estas iniciativas literárias entre os países de língua portuguesa e a China? Eu estou otimista, confesso, porque para muitos de nós, a China era um mito, mas a partir do momento em que começarmos a absorver a literatura desses países, nós vamos descobrir a humanidade que reside na China. Falando do meu país, nós conhecemos a China pelos objetos que eles nos vendem, pelos chineses que aparecem, que trabalham conosco, mas a alma do chinês, o sonho do chinês, o universo do chinês, nós não conhecemos. E o contato com esta literatura é muito enriquecedor. Cheguei aqui, comprei alguns livros escritos por portugueses sobre os chineses. Vou ver ainda se consigo comprar alguns livros chineses que foram traduzidos para Portugal, mas o pouco que já pude ler, deu-me para perceber que o povo chinês é um povo com sonhos, igual a qualquer povo do mundo. Isso é enriquecedor para quem escreve. Por exemplo, eu sou uma mulher que venho de um determinado contexto social e histórico e é interessante descobrir, por exemplo, outras escritoras que vêm de outros quadrantes do mundo. Falando concretamente de uma escritora chinesa com quem estive no debate, pude perceber que por trás daquela mulher que vem de um país tão diferente e tão mitológico, existe um ser humano, que pensa exatamente como eu que venho de uma comunidade muito mais pobre, de um continente completamente diferente. E ficamos amigas, ficamos irmãs porque somos mulheres e isso é muito enriquecedor.
Conhece literatura chinesa? Eu tive o primeiro contato com a literatura chinesa no tempo do comunismo no meu país. Chegavam livros que exaltavam a revolução comunista. Depois disso não conheci mais nada. Então esses encontros proporcionam-me o encontro com a verdadeira China.
Achei o festival bom, renovei-me. Uma das coisas que eu sempre sinto quando vou a uma conferência é que eu reflito naquilo que as pessoas dizem de mim e do trabalho que faço e de facto é encorajador chegar aqui e descobrir que afinal as pessoas valorizam o trabalho que eu faço. Por outro lado, vou levando também das outras pessoas, um pouco deles, o que eles dizem, o que eles fazem, como fazem. Esta troca de experiência é qualquer coisa que dá força a quem escreve. Por exemplo, no meu caso, eu comecei a sentir o valor do meu trabalho a partir das minhas viagens. Não sei porquê, mas raras vezes as pessoas dão valor a um trabalho das pessoas da sua própria terra.
Sente alguma discriminação por parte dos próprios escritores moçambicanos? Senti antes, agora não. No princípio senti bastante, olhavam para mim e diziam: não é académica, é mulher, o que é que ela sabe. Havia isso, mas isso já passou. Hoje estou em pé de igualdade com qualquer um e até sou muito mais respeitada hoje do que era antes.
E Macau? É uma cidade louca.
Era capaz de escrever sobre Macau? Vou tentar escrever algo (risos).
Por falar em escrever, que projeto é que tem em mão? Este ano decidi não fazer muito. Não posso por motivos de saúde, mas estou a ler bastante. Este ano penso que vai ser dedicado à leitura porque não me posso esforçar tanto.
Escrever é um processo árduo? Depende. Algumas vezes é tão difícil e é tão duro que me dá prazer. A escrita, apesar de ser um trabalho é um trabalho que faço com prazer. Não há dúvida que a escrita cria uns hábitos muito particulares para os escritores. Fica muito mais isolado, muito metido na sua própria introspecção, não tem um convívio comum de toda a gente.
Uma última pergunta, por que tem os olhos azuis? É a genética. A genética faz das suas. A única coisa que eu sei dizer é que isto é do lado da minha mãe, tenho quatro irmãos assim com estes olhos. O meu filho, que já tem 35 anos, já está também a ficar com estes olhos. Mas acredita que houve um momento em que eu fiquei aflita com isto, porque as pessoas perguntavam-me, o que é que tens nos olhos? Fui ao médico, fiz os testes e o médico riu-se e disse, olha, isso chama-se Arco Senil, é uma coisa rara mas existe. Eu nasci com os olhos castanhos, como toda a gente, mas a partir dos 25 anos os olhos começam a mudar de cor e vão mudando de cor à medida que o tempo passa. Para os entendidos nisto, quem olha para mim, pelos olhos conhece a minha idade.
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