Entrevista Alexandra Lucas Coelho, escritora portuguesa

Macau apareceu por um acaso na vida de Alexanda Lucas Coelho. Como muitos outros acasos que de forma fortuita cruzaram a vida da escritora e jornalista portuguesa. A partir desta cidade, onde participa na segunda edição do Festival Literário de Macau, Alexandra Lucas Coelho vai começar uma viagem de um mês pela China. A autora de várias obras de literatua de viagem como o "Caderno afegão" ou o "Viva México" participou num conferência sobre "como escrever uma cidade". À Rádio Internacional da China, a escritora falou deste caminho que ainda agora começou.

Quais são os ingredientes para escrever sobre uma cidade?

As pessoas, antes de mais. Se calhar é mais difícil nós escrevermos sobre uma cidade que sempre foi a nossa [cidade] porque não temos distância para a ver. Se pensar bem, eu nunca escrevi sobre Lisboa, que é a minha cidade. E precisei de sair de Lisboa para hoje poder olhar para Lisboa como talvez não olhasse há 20 anos.

Para se sentir uma estranha na própria cidade?

Não, não uma estranha, mas para poder vê-la com uma densidade que é a da distância, que é ter visto outras coisas e poder ver de novo. É preciso recuar, sair. Pelo menos eu precisei disso. Agora, a minha experiência em cidades foi sempre essa, de tomar como ponto de partida alguém e depois é como uma rede, alguém que nos leva a alguém, que nos leva alguém e a certa altura há muitos caminhos possíveis numa cidade. Uma cidade é um labirinto infinito, onde nós podemos passar uma vida inteira, podemos estar um dia, podemos estar uma vida e ir sempre por caminhos diferentes. Nunca será a mesma história, não é? Ou seja, quem conta uma cidade está sempre a falar daquilo que é, daquilo que traz consigo, da forma como olha, aquilo que procura, tem a ver com aquilo que é. Essa história será sempre diferente de cada vez. Mas essa é a parte da riqueza, cada história é diferente. E cada pessoa leva-nos por caminhos diferentes. No fundo, contar uma cidade é um conjunto de acasos que se ligam uns aos outros, com os quais nós fazemos uma espécie de tapeçaria, que de alguma forma parte de algumas ideias que nós tínhamos ou daquilo que nos interessava, mas eu acho que é possível sempre, de cada vez ir por caminhos diferentes. Agora são sempre as pessoas que nos levam por esses caminhos.

Em relação a Macau, os cineastas dizem que é uma cidade muito cinematográfica. E para os escritores?

Eu estou em Macau há 48 horas. Há uma sensação muito clara para quem viu cinema asiático. Isto é exatamente como nos filmes, ou seja, a sensação é essa, a de estar dentro de um cenário, estar dentro de um filme. Acho que isso tem a ver também com as cidades que fazem parte do nosso imaginário, Nova Iorque também é assim. Nós chegamos a Nova Iorque e sentimos que já vimos aquilo porque aquilo já estava nos filmes. De alguma maneira, Macau tem esse lado, essas imagens. Agora, a escala é esmagadora e eu não esperava esta escala. A escala deste lugar é uma coisa inédita para mim e é uma mistura que eu nunca vi.

As cidades do nosso imaginário não são cidades muito diferentes das cidades que são o nosso porto seguro, que não são o nosso espaço de conforto, cidades com línguas e culturas diferentes. Essas são as cidades sobre as quais a Alexandra quer escrever ou não necessariamente?

Eu posso sentir-me em casa na cidade de Gaza onde estão amigos, como me posso sentir em casa em Jerusalém, como posso sentir-me em casa no Rio de Janeiro, ou seja, eu acho que o sentir em casa está relacionado com o haver uma intimidade.

Talvez não seja a questão de não sentirmo-nos em casa, mas uma cidade tão diferente daquelas a que estamos habituados, à cultura, à língua, onde há algo de novo.

A ideia de estar habituado não é uma ideia necessariamente boa. Quando nós nos habituamos às coisas, nós deixamos de ver as coisas, de as ouvir, há uma percepção que se transforma numa espécie de coisa opaca. Eu acho que viajar também tem a ver com uma construção de identidade contínua, ou seja, aquilo que eu sou como lisboeta, portuguesa, europeia, todas essas minhas identidades, elas foram mudando, elas foram sendo reconstruídas com as viagens. Eu não deixei de ser menos lisboeta por isso, nem menos portuguesa, nem menos europeia, mas sou certamente diferente. Isto para dizer que o estar à vontade - a sensação de nos sentirmos em casa - eu acho que tem a ver com essa empatia que é uma empatia de momentos com um determinado lugar e esse lugar acrescenta àquilo que nós somos, alguma coisa se abre ali e já alguma coisa se moveu dentro de nós. Nós passámos a ser aquele lugar e aquele lugar passou a ser o que nós somos também. Então, é esse o click, não é uma sensação de estranho nem de estrangeiro, pelo contrário, é um momento em que nós estamos inteiramente ali e aquele lugar também é nosso e passa a fazer parte de nós, da minha identidade. Em última análise é isso que procuramos quando viajamos.

Depois de Macau vai fazer uma viagem por Shenzhen, Xangai, Pequim. Quais são as expetativas desta viagem pela China?

A minha maior incógnita é a língua. Eu não falo chinês e não sei até que ponto será fácil encontrar línguas intermediárias, como o inglês, francês, espanhol ou outras línguas. Eu já estive em várias outras zonas do mundo onde eu não falava propriamente a língua, mas isso nunca foi uma dificuldade. Claro que é sempre muito diferente viajar no México, em que eu consigo compreender tudo aquilo que é dito à minha volta, ou viajar na Amazônia e viajar no Afeganistão em que eu perco tudo o que está à minha volta. Mas a minha experiência foi sempre a de encontrar gente que me guiou essa comunicação de forma a reduzir esse abismo até uma zona quase imperceptível. Eu nunca senti que isso fosse uma barreira total. Não sei como vai ser na China.

No "Caderno Afegão" vê-se que há muito trabalho de pesquisa, trabalho jornalístico. Que pesquisa fez aqui para a China?

As situações também são diferentes. Em relação ao Afeganistão, eu passei anos a ler e a reunir material, mas aquela viagem toda aconteceu durante um mês. E no fundo, aquela viagem é uma viagem em que vou de pessoa em pessoa. Claro que aquilo tem pesquisa, tem pesquisa feita antes e durante, mas no fundo vou de pessoa em pessoa. Se isso puder acontecer na China, é o ideal. Eu não passei anos a ler sobre a China como me aconteceu em relação ao Afeganistão.

Não pode ser um golpe de sorte às vezes conhecermos a pessoa certa no momento certo?

Absolutamente. A ideia que eu tenho é que, quando eu digo que vamos de acaso em acaso é mesmo isso. É-nos dado um acaso, alguém nos aparece, nós podemos aproveitar isso ou não aproveitar isso. Nós podemos dobrar aquela esquina ou não dobrar aquela esquina, podemos ir com aquela pessoa se ela nos convida para sua casa ou não, há uma série de pequenas decisões que nós tomamos e que vão dar origem a desvios, a caminhos. É um pouco isso que eu espero em relação à China. Agora, isto é um território tão imenso, tão gigante, com uma escala tão inédita para mim. É assim, eu já estive na Índia e moro no Brasil, são sociedades com dimensão continental. Mas a China não se compara assim com isto. É muito grande. É tão grande que a certa altura eu acho que a minha postura foi de que seria impossível preparar-me para esta viagem. Com toda a humildade, eu não vou, nem uma vida bastaria para conseguir entender se calhar um bairro de Pequim. Isto está muito claro para mim, com toda a humildade. Uma viagem é a experiência da viagem. Eu não vou escrever sobre a China, eu vou escrever sobre a minha experiência na China e não há outra forma.

Esta marcha chinesa vai ter um registro romanceado como "E a noite roda" ou mais um registro jornalístico como "Caderno Afegão"?

Será certamente um livro de viagens como o "Caderno Afegão" e o "Viva México", é para a mesma colecção em que estão publicados esses dois livros. Agora, como vai ser o texto, não sei. Eu não quero repetir fórmulas, o "Caderno Afegão" era um diário construído dia-a-dia. O "Viva México" para mim é um livro mais íntimo, tem uma dimensão menos jornalística, talvez que o "Caderno Afegão". Este livro será provavelmente menos jornalístico, eu não vou fazer reportagens na China, eu vou viajar. Aquilo que vai resultar dali ainda não sei, mas vai não vai ser um romance.

Se não fosse este festival, a China não estaria na sua rota?

À partida não era uma rota que eu tivesse decidido. Sim, foi exatamente uma daquelas circunstâncias de tomar um acaso, que é este convite e pensar, eu vou fazer esta viagem a partir daqui e vamos ver o que acontece.